Tal como os incêndios lavram as florestas há muito secas, a inflação corrói o mês de quem trabalha, há muito longo. Num caso como noutro, as medidas do Governo são pífias, deixando correr o mal na expetativa de uma solução milagrosa. Tal como as temperaturas, o descontentamento aumenta.
Assim se faz Portugal, uns vão bem e outros mal
Nos 8,7% em junho, a subida dos preços foi a mais alta em Portugal nos últimos 30 anos. A carne e o peixe encareceram entre 15% a 20% e os laticínios 10%. O custo dos combustíveis tem igualmente batido recordes sucessivos, sem que as reduções das últimas semanas mitiguem o flagelo. Quem menos tem, obrigado que está a gastar o salário no consumo imediato, mais sofre. Não contribuímos para a crise, mas querem que a paguemos.
A guerra na Ucrânia, as sanções e contrassanções, são parte da explicação. Mas a subida dos preços vem de antes. Incapazes de produzir riqueza, as grandes empresas atiram-se aos nossos salários subindo os preços. O crime compensa: a GALP anunciou que, só em 2022, já lucrou 420 milhões. Quem pensava que eram o ISP que encarecia a gasolina desenganou-se. A Jerónimo Martins, dona do Pingo Doce, viu os seus lucros subirem 40% já este ano, alcançando os 261 milhões. O BCP multiplicou por seis os seus, para 74,5 milhões de euros. Os ricos rejubilam sem pudor: Mário Ferreira, empresário que irá receber 52% do dinheiro do PRR para a recapitalização de empresas (40 milhões) anunciou que irá ao espaço no programa de Jeff Bezos, patrão da Amazon. Os bilhetes para tal aventura andam pelos 30 milhões de dólares. O Governo, no mínimo, deveria taxar os superlucros destas multinacionais e tirar os apoios públicos ao excêntrico empresário.
O Governa nada faz, a direita aproveita
A passividade é a política do Governo. O seu mantra é o ditame liberal de deixar o mercado funcionar ― e este nem agradece, engorda à nossa custa e exige mais. Esta política poderá sair cara ao próprio Governo, mas sobretudo ao povo trabalhador. Duas recentes sondagens indicam que, hoje, o PS já não obteria maioria absoluta. A direita engorda: PSD, IL e Chega juntos já superam o PS. O Bloco de Esquerda beneficia também da oposição que tem feito, recuperando pontos, e o PCP perde numa das sondagens, subindo na outra.
Mas, infelizmente, a direita ainda está na pole position. A instabilidade e o descontentamento crescentes atiçam-na. Luís Montenegro, da ala ultraliberal, Sancho Pança do passismo, à cabeça do PSD, anuncia uma radicalização direitista. O Chega carrega na xenofobia e escolhe a imigração como tema para o choque com Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República. Cotrim de Figueiredo, da IL, em entrevista ao Público, logo saiu em defesa de Ventura e Marcelo Rebelo de Sousa aceitou recebe-lo para ouvir os seus queixumes. Enquanto isso, o líder parlamentar do Chega ameaçou fisicamente um assessor do PS nos corredores do Parlamento ― sobre isto, Santos Silva, Marcelo ou Costa nada dizem. É esta conivência que tem permitido ao fascismo crescer. Ao mesmo tempo, uma trupe de comentadeiros oficiais desata nos média uma campanha contra os direitos LGBTIA+ e o antirracismo, alinhando o discurso com o mais reacionário dos partidos. Num cenário de instabilidade crescente, as direitas não hesitarão em unir-se para tentar cercar o governo, atacar a esquerda e criar um clima intimidatório contra quem mais está a sofrer com a crise. Montenegro, jogando com as palavras, afirmou que rejeita políticas xenófobas e racistas, mas sem se negar a convergir com os partidos que as promovem. Nos Açores, por exemplo, o PSD continua a governar com o apoio do Chega. Ainda que a legislatura esteja no início e o PS tenha a maioria absoluta, os tempos não estão para mandatos completos (que o digam Draghi ou Boris Jonhson). Caso Costa fuja para Bruxelas em 2024, haverá eleições. E a direita está à espreita.
Organizar o descontentamento e aquecer as ruas
Esse perigo é mais um motivo para acionar as lutas e forçar que a oposição ao Governo se centre em proteger a vida de quem trabalha, fazendo os ricos pagar pela inflação. Exigir que os superlucros das multinacionais sejam taxados e os salários aumentados traduz bem os anseios populares. Exigir do PS que, em vez de disputas verbais com a direita, aplique medidas que não estejam reféns da liberal ganância do mercado, é o caminho.
A insatisfação cresce e é possível que, à semelhança de outros países da Europa, até ao final do ano irrompam lutas. Em cada empresa, sobretudo onde há força e organização, podem surgir greves por salários. Promover e organizar essas batalhas é o desafio. E ir além delas é necessário: unir essa contenda numa onda nacional é a melhor forma de obrigar o Governo a ceder e de afastar a direita da linha da frente. Atualização dos salários, taxação dos lucros das multinacionais, tabelamento dos preços de habitação, alimentação e energia, investimento no SNS e na educação, combate ao discurso de ódio a pessoas LGBTIA+, racializadas e mulheres; eis a plataforma de esquerda para colocar uma maioria social da na rua. Partidos de esquerda, movimentos sociais e sindicais podemos confluir nesta batalha. E, juntos, podemos conquistar vitórias contra os meses cada vez mais longos e a vida cada vez mais cara.
Créditos da imagem: Climáximo