Está em curso a análise de novos critérios de avaliação para profissionais de saúde das Unidades de Saúde Familiar modelo B, proposto por um grupo de trabalho específico criado para elaborar uma série de novas métricas. Em questão está a atribuição de um bónus, um valor adicional ao ordenado base (bastante reduzido, diga-se de passagem), a profissionais que cumpram determinados critérios de avaliação propostos – modelo na verdade muito semelhante ao que os trabalhadores de call center tem, com as KPIs, um suplemento ao ordenado que serve para pressionar e assediar, com parâmetros muitas vezes inalcançáveis.
Este modelo – de bónus de performance – é por si só muito problemático, em todos os setores, mas no da saúde é especialmente grave. Cada vez mais se encara a saúde como um negócio, onde interessa flexibilizar, optimizar e limitar a qualidade. A saúde não é uma linha de montagem, não se tratam peças ou números – é um dos cuidados mais essenciais na sociedade.
Contudo, a parte mais problemática prende-se com questões de saúde reprodutiva e sexual. Em causa está o critério de ausência de interrupção voluntária da gravidez (IVG), nos 12 meses anteriores à data de referência do indicador, e também a ausência de doenças sexualmente transmissíveis na mulher. A justificação genérica é que se deve trabalhar para minimizar as gravidezes indesejadas mas o que estas novas métricas propõem na prática é reduzir o acesso à IVG, dando maior controle ao médico e aos profissionais de saúde para decidir que pode ou não ser feito – tendo em conta uma questão de remuneração. É um retrocesso absurdo. Marta Temida, Ministra da Saúde, foi mais longe numa explicação igualmente absurda – o critério da realização IVG “fosse considerado como falha do acompanhamento em planeamento familiar realizado pelos profissionais de saúde. Todos entendem que a IVG para as mulheres que a fizeram é profundamente penalizadora para a saúde física e mental” (1).
Um retrocesso que foi amplamente criticado em diversos setores, desde profissionais de saúde, organizações sindicais, figuras públicas e a sociedade civil em geral, levando à retirada destas duas medidas desde já da proposta em consideração para a avaliação.
As métricas não servem para melhorar os cuidados de saúde, nem priorizar as necessidades das utentes – o efeito prático é limitar, degradar e pôr em causa um direito fundamental, conquistado com muita luta. É um policiamento dos nossos corpos.
As métricas de avaliação também servem para empurrar cada vez mais pessoas para o privado, com a falta de recursos humanos e físicos e a degradação do SNS, quer seja pelas comparticipações, quer através dos seguros de saúde. E sabemos que serviços de cuidados privados excluem uma grande parte da população, pelo fator ecónomico, acabando por haver menos saúde para todas, todos e todes.
Sobre o meu corpo decido eu!
Numa altura em que vemos variados ataques aos corpos e direitos reprodutivos das mulheres – nos Estados Unidos estão a tentar ilegalizar o aborto em todas as situações; em El Salvador uma mulher foi condenada a 30 anos de prisão por um aborto espontâneo, na Polónia o governo fez vários atentados aos nossos direitos de saúde primários – Portugal continua a ter uma das melhores experiências de despenalização da IVG. Há 15 anos que temos “mais saúde pública, muito mais respeito, muito mais direitos” (2) mas ainda temos muito caminho para percorrer de forma a garantir acesso a cuidados de saúde e educação sexual que seja verdadeiramente inclusiva, não discriminatória e para todas, todos e todes.
Sabemos que existem muitos problemas – desde a falta de educação sexual nas escolas, à transfobia no SNS, a estagnação dos cuidados de saúde reprodutiva, a violência obstétrica que afeta de forma ainda mais grave as mulheres racializadas.
E embora a proposta destas métricas tenha sido desconsiderada, o que ela significa é que em épocas de crise e contenção, de crescimento das agendas neofascistas e reacionárias, os nossos direitos são ainda mais frágeis. Em 2015 o governo PDS/CDS introduziu taxas moderadoras e a obrigatoriedade de consultas de aconselhamento com a participação de médicos com objeções de consciência, que foi posteriormente revogado na Geringonça (3).
Por isso, importa defender os nossos direitos quotidianamente – não damos passos atrás. Não aceitamos retrocessos. Queremos mais e melhores condições nas áreas da saúde reprodutiva e sexual, no setor público.
E vamos defender os nossos direitos e lutar contra os retrocessos a cada momento, nas ruas, juntas, porque sabemos que direitos de saúde como a IVG são direitos de saúde pública. A defesa dos nossos direitos deve ser feita em unidade, juntando vozes, ganhando força e defendendo-nos umas às outras. Ninguém larga a mão de ninguém.
(1) https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/porque-e-que-voltamos-a-falar-sobre-o-aborto-em-portugal