Entrevista com Ricardo Cabral Fernandes
A 13 de julho foi lançado, em Lisboa, o novo jornal digital Setenta e Quatro. “Um projeto de informação digital que atua na garantia dos valores democráticos e progressistas.” – assim se assume. Não por acaso, nas suas reportagens podemos ler sobre a extrema-direita, a história do Rendimento Social de Inserção ou a seca no Sul do país. O novo jornal digital propõe-se a ser autofinanciado e pode ser apoiado por qualquer pessoa aqui. Para conhecer melhor este projeto, falamos com Ricardo Cabral Fernandes, diretor do Setenta e Quatro.
Semear o Futuro (SoF): O Setenta e Quatro apresenta-se como um jornal com opinião e apostado na defesa da democracia. Quem estiver atento, encontra como autores de vários textos do jornal e na associação Começar para Continuar, proprietária do mesmo, pessoas de vários quadrantes da vida pública e política. Qual é o mínimo denominador comum do Setenta e Quatro? Entre a objetividade jornalística e a opinião que assume, quais os princípios que balizam este projeto?
Ricardo Cabral Fernandes (RCF): O Setenta e Quatro não se apresenta como um jornal “com opinião”, mas sim comprometido com a defesa das causas progressistas. É diferente. O nosso jornalismo não será imparcial, mas sim objetivo. Acreditamos que o jornalismo é um pilar fundamental para uma sociedade democrática e queremos contribuir para o fortalecimento da democracia.
Tanto o Setenta e Quatro como a associação Começar para Continuar representam diferentes posicionamentos no seio do campo progressista, e temos muito orgulho em que assim seja. A pluralidade é uma das nossas forças. O que nos move é o entendimento de o acesso à informação ser um direito e de ser necessário defender-se a democracia e as conquistas de 1974, desafiando todas as formas de discriminação presentes na sociedade. São precisamente estes os princípios que balizam o nosso trabalho, o nosso empenho com o jornalismo e com os nossos leitores e leitoras. Sabemos o desafio que temos pela frente.
SoF: Uma das reportagens que inauguram o Setenta e Quatro partiu de uma infiltração tua no grupo português do movimento de extrema-direita Proud Boys. Já em 2020, tinhas escrito uma reportagem impressionante sobre as ligações da extrema-direita portuguesa com diversas redes internacionais. Enquanto o fenómeno mais evidente do crescimento da extrema-direita em Portugal é o Chega, tu tens investigado também estes grupos, mais minoritários, mas também mais radicais também eles crescentes.
Como dirias que se relacionam estes dois lados do crescimento da extrema-direita o lado político-partidário, concentrado no Chega, e a constelação de grupos militantes e violentos? Por um lado, parece haver uma interpenetração entre estes dois mundos; por outro, parece haver conflitos. No último Congresso do Chega, André Ventura pareceu até querer retirar espaço aos representantes destas alas mais radicalizadas…
RCF: A extrema-direita violenta continua marginal em Portugal, continua atomizada, ainda que se vejam momentos de cooperação aqui e ali, principalmente em datas simbólicas. No entanto, a normalização das ideias e narrativas de extrema-direita no espaço público desde que o Chega entrou no parlamento, a par da radicalização da direita democrática, está a contribuir para se vir a ter um terreno fértil para estas organizações mais marginais recrutarem, principalmente entre os mais jovens.
Há uma interpenetração entre o mundo da extrema-direita extraparlamentar e o Chega. O Chega é um projeto de autonomização da extrema-direita face aos tradicionais partidos da direita em Portugal, o CDS-PP e o PSD. Houve projetos que o tentaram fazer nas últimas décadas, mas a grande maioria nasceu para desaparecer pouco tempo depois. A rara exceção foi o Partido Nacional Renovador (hoje Ergue-te!), mas mesmo assim manteve-se nas margens da política portuguesa. Nunca conseguiu ultrapassar uns poucos milhares de votos.
Ao contrário do MIRN de Kaúlza de Arriaga ou do PNR, o Chega apareceu sem a narrativa de desejar federar a extrema-direita, mas na prática conseguiu fazê-lo até certo ponto. Captou desde o seu início elementos da extrema-direita tradicional: antigos militantes do PNR e até da neonazi Nova Ordem Social de Mário Machado, como é o caso do presidente da Mesa da Convenção do Chega, Luís Filipe Graça. Mas também de uma extrema-direita mais antiga, dos tempos da Revolução de Abril: Diogo Pacheco de Amorim, ex-vice-presidente e hoje presidente da Comissão Política do Chega, foi do gabinete político da organização terrorista MDLP.
O Chega é encarado por uma parte significativa da extrema-direita portuguesa como instrumento capaz de furar na política portuguesa, normalizando o seu discurso e ideias. Muitas vezes é um apoio crítico, por discordarem de algumas propostas políticas e da estratégia do partido. Mas a normalização das ideias e narrativas da extrema-direita no espaço público pelo partido de extrema-direita cria um contexto favorável às organizações mais marginais.
O Chega está em guerra civil interna desde a sua criação e o retirar espaço aos elementos mais radicais é mais uma via para a fação de Diogo Pacheco de Amorim dominar a estrutura interna do partido do que uma eventual rejeição destas ideias radicais.
SoF: Na conversa que teve lugar na apresentação do Setenta e Quatro, Ana Gomes, uma das oradoras, disse algo como (e citamos de cor) estou disponível para levar para lá do jornalismo as causas que o Setenta e Quatro representa. Sendo o jornalismo o terreno em que se move este projeto, vê-lo como parte de um caldo de cultura mais amplo em que se possam forjar alianças para lutas políticas e sociais? Ou, dito de outra forma, como se relacionará o Setenta e Quatro com a disputa política e social (não necessariamente partidária) em combates como o antirracista, o feminismo, a justiça climática ou o antifascismo?
RCF: Um dos objetivos do Setenta e Quatro é trazer para o espaço público e agenda mediática temas e lógicas de poder pouco escrutinados ou mesmo invisibilizados. Além do jornalismo de investigação que queremos fazer, também desejamos que o Setenta e Quatro seja um espaço de reflexão e de encontro do campo progressista: fortalecer a democracia fortalecendo a discussão e reflexão públicas.
Daí termos uma seção de ensaios, por exemplo. Queremos estar próximos de quem pensa o mundo e os seus possíveis caminhos: as universidades e a rua. Por um lado, aproximar o conhecimento científico, académico, do jornalismo e, por outro, o jornalismo dos ativismos, de quem tenta fazer a diferença nas ruas. Também pretendemos reforçar a cultura jornalística em Portugal, mais especificamente o jornalismo de investigação.
Queremos dar especial foco às desigualdades sociais, à crise climática, ao discurso de ódio e apresentar novos ângulos sobre temáticas internacionais, por exemplo. É por isso que também vamos apostar em reportagens longas e aprofundadas. Dois exemplos desta abordagem são as reportagens sobre o acesso á água em Odemira, da Isabel Lindim, e sobre o Rendimento Social de Inserção, da Rafaela Cortez.