Um 8 de Março e uma Greve Feminista Internacional em meio a uma pandemia

Logo no início da Pandemia, que marca agora cerca de um ano, rapidamente nos apercebemos que a afirmação “Estamos todos/as no mesmo barco” era mais uma mentira impossível de alguma vez corresponder à realidade. O novo normal aprofundou as já existentes desigualdades sociais e económicas, desfavorecendo ainda mais as pessoas racializadas, as imigrantes, as mulheres, as LGBT+s. Os barcos variam entre cruzeiros de luxo e botes insufláveis, pedaços de esferovite que por sorte flutuam.

Vários cenários se tornaram realidade face à COVID-19. Um setor da população confinou, entrando em teletrabalho, lidando com tele-escola, a casa tornada escritório, escola, creche, cantina, recreio, dormitório e lugar de lazer. Outro setor, quem trabalha nos transportes, na saúde, nas escolas, nos supermercados, nos mercados abastecedores, nas limpezas, na recolha do lixo, e outros setores (nada essenciais como a construção civil e determinadas fábricas) ou quem não teve acesso a layoff, continuou a trabalhar fora de casa, enfrentado os perigos de contágio por falta de condições nos transportes e nos locais de trabalho. Outros tantos foram para layoff ou para o desemprego – é o caso de muitas empregadas domésticas ou de muitos trabalhadores do mercado informal.

Desde cedo colocou-se em cima da mesa quais são os setores essenciais para o funcionamento da sociedade e quem são as pessoas que desempenham funções nesses setores. Em todos os cenários vemos rostos de mulheres. Em Lisboa basta ver as imagens dos comboios apinhados da linha de Sintra ou da Azambuja para ver quem carregou nas costas a pandemia nas ruas e nos trabalhos presenciais.

A reprodução social em crise

A discussão sobre a reprodução social durante esta pandemia colocou-se a muitos níveis. A reprodução social são todas as atividades e instituições necessárias para construir, manter e substituir a vida, desde parir a limpar, cozinhar, alimentar, lavar roupa até existência de habitação, transportes, saúde, espaços públicos de lazer. Basicamente é tudo que permite que as pessoas vivam e possam trabalhar.

Já desde antes da pandemia as feministas que estudam e elaboram sobre a teoria da reprodução social nos falavam de uma crise nos cuidados ou na reprodução social, pelos ataques a todos os níveis que vem sido feitos, através de políticas neoliberais, visíveis por exemplo na privatização e no desinvestimento tremendo nos serviços públicos, nos ataques aos direitos dos/as trabalhadores/as.

As tarefas de reprodução social são, regra geral, garantidas por mulheres, quer seja nas duplas e triplas jornadas de trabalho quer seja nos setores altamente femininos como é o caso da saúde, da educação e dos cuidados.

São os trabalhos feitos por amor, são aqueles feitos com os salários mais baixos, com muita precariedade, com poucas garantias e em ambientes onde existe possibilidade de violência e assédio.

Então em cima da crise que já se aprofundava, somamos a COVID-19 e sabemos que os efeitos desta conjugação vão moldar os próximos anos.

Mesmo sem teorização, sentimos estas realidades.

E sentimos que a atual organização económica, política e social não tem as ferramentas capazes de lidar com esta pandemia ou outras crises que surjam, quer sejam sanitárias, climáticas etc., precisamente porque está tudo orientada por maximizar o lucro ao invés de manter a vida. É por isso que, enquanto milhares de pessoas morrem pelo mundo, pela COVID e por falta de serviços, a discussão se centra na economia e na recuperação económica. Quando é necessário um programa de vacinação nacional e internacional acessível para toda a população vemos que quem produz a vacina e quem detém as patentes são farmacêuticas privadas e que as vacinas estão a ser distribuídas de forma totalmente injusta pelos países e pelas pessoas.

Como diz a Tithi Battacharya, o capitalismo privatiza a vida mas socializa a morte.

A interseccionalidade como base do nosso  programa

Então no momento de responder à crise do COVID ou à crise ambiental ou no combate à extrema-direita, precisamos de ferramentas que nos abram os horizontes. Precisamos de entender quem está onde, a fazer o quê e porquê. Precisamos de aplicar as ideias que as feministas negras nos trazem da interseccionalidade. Estas mulheres desde cedo se aperceberam que existem conjugações de opressões ou intersecções de opressões que originam a nossa experiência coletiva no mundo. Entenderam que o padrão universal utilizado para ler o mundo, o da branquitude, não serve nem nunca serviu como modelo para a emancipação de todas, todes e todos.

No feminismo a tarefa é exactamente essa – deixar de ver o mundo e as exigências pela lente só de algumas mulheres. É imprescindível o movimento adotar um programa intersecional, porque ignorar ou tratar superficialmente as questões especificas das mulheres racializadas não serve para libertar o conjunto das pessoas oprimidas e exploradas. Quando lutamos por direitos devemos entender que direitos para todas/os não tira direitos a ninguém, ou nas palavras de Angela Davis, quando as mulheres negras conquistam direitos, é um avanço para todos os setores da sociedade. Pelo contrário, direitos só para alguns/algumas ameaça a liberdade de todas e todos.

Os movimentos sociais e em especial o feminista, tem de partir das necessidades dos mais oprimidos e construir para cima, porque assim ninguém fica para trás. Fazer o caminho contrário deixa muitas de fora, como nos mostrou a história.

O movimento sindical também – os programas e as reivindicações dos sindicatos devem atender à heterogeneidade das pessoas que dizem representar. Sem incluir reivindicações especificas para as mulheres, para as LGBT+s, para as pessoas racializadas, abdicam de dar respostas aos problemas especificas que definem as nossas vidas. Não existem questões para agora e questões para depois.

A solidariedade floresceu

Para terminar, queria falar de outra das nossas armas, talvez uma das mais poderosas! A solidariedade. A solidariedade floresceu em muitos lugares durante a pandemia, suprindo as necessidades muitas vezes básicas, como alimentação, produtos de higiene para quem menstrua, medicação etc., que o Estado e as instituições ignoraram. É urgente criar redes de solidariedade, rodear as pessoas de solidariedade, mostrar que existe outra forma de relacionar-nos que não a da individualidade e competitividade pelos recursos.

Até no combate à extrema-direita a solidariedade é imprescindível. Quando o discurso de ódio e medo ataca dizendo que não chega para todos, que alguns vão ter que morrer, perder direitos etc., nós temos que nos somar e responder que sim, chega para todos/es/as. Somos nós, as mulheres, as pessoas racializadas, imigrantes, ciganas, LGBT+s, trabalhadores, que produzem e reproduzem, é sobre nós que cai o peso do mundo. Então o mundo tem que ser nosso e tem que ser construído à nossa medida.

A Greve Feminista Internacional, o movimento antirracista, as greves por justiça climática que surgem mostram o potencial gigante que temos. Temos muitos desafios pela frente, mas temos muitas ferramentas para nos orientar.

Revindicamos as ideias do feminismo para os 99%, que defendem uma articulação nacional e internacional dos movimentos sociais, dos partidos de esquerda, do movimento sindical, num grande diálogo que não silencia algumas vezes imprescindíveis para a libertação de todas e todos.

A pandemia trouxe muita miséria e muita morte. Trouxe mais uma vez a confirmação que a atual organização não serve – não nos salva, não nos protege e não nos dá futuro. Há muito que construir e muito que partilhar ainda e há esperança também.

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