Uma epidemia chamada capitalismo e uma doença chamada desespero


Hoje não vos trago nada muito elaborado, nada no sentido que costumam ler por aqui. Vim falar sobre uma dimensão extremamente importante não só na atividade política como em tudo que fazemos: a dimensão pessoal, a nossa relação com as nossas emoções e com as das outras  como parte integrante de uma práxis revolucionária.

Escrevo este contributo do lugar de alguém a quem o isolamento social e contexto de pandemia afetou bastante e de alguém que tem vindo a ver as pessoas que me rodeiam sofrer o mesmo processo. Não é que antes da pandemia estivéssemos todas saudáveis, não estávamos. Mas o aumento dos despedimentos, a possibilidade de aumento de assédio feito no local de trabalho, o terror da maior convivência com o parceiro agressivo ou com a família LGBTIfóbica, as faltas de perspetivas configuram fatores de stress adicionais às nossas vidas. E, não, não adianta, seguimos de carne e osso, seres sensíveis, seguimos ansiosas, seguimos definhando com os efeitos físicos do desespero que é ser emigrante, mulher, negra, lésbica e assalariada. Seguimos carne pra canhão que replica uma série de péssimos hábitos de (auto) cuidados porque a agressividade é a língua materna de uma sociedade doente de capitalismo, centrada na exploração de lucro a qualquer custo e no hábito de bestificar a próxima. Bestificar a negra e o negro, bestificar o cigano e a cigana, bestificar a lésbica, bestificar o “afeminado”, bestificar todas as outras e a nós próprias.

Deduzo que tudo isto possa parecer patético para alguns, principalmente para aqueles que ainda estão convencidos de que o ser político na sua melhor forma é um homem frio, calculista, que aparenta sem emoções, mas o nome disso é masculinidade tóxica. E o tóxica não vem só de forma metafórica, existe ali como lembrança de que os efeitos físicos da ansiedade autoinfligida e infligida às outras mata e faz constar no atestado de óbito motivos desde o suicídio até ao distúrbio alimentar severo, ataque cardíaco ou tensão alta crónica.

Da maneira que eu vejo, nas nossas tentativas de construir um caminho para emancipação de todas as pessoas desta sociedade-matadouro, é imprescindível encarar o cuidado à próxima como parte integrante de um programa revolucionário. É positivo atentar às emoções da próxima. É positivo sentir empatia por outros seres humanos, fauna e flora. É positivo ser sensível. É positivo ser o contrário de “masculino” como referências para uma série de características que edificam a ideologia da dominância sobre os outros corpos. É positivo e é revolucionário reconhecer a nossa habilidade de nos relacionarmos de forma afetuosa.

Por isso, tu que te sentes num beco sem saída quer por questões laborais, quer por racismo, quer por machismo, lgbtifobia ou outros motivos: estás certa. Tens todo o direito de exigir ser cuidada, de exigir tempo para cuidar e de quereres distância de espaços que não nos façam bem. Se sabemos que toda a atividade revolucionária parte sempre do individual para o coletivo, mas que vive também da dialética entre o coletivo e o individual, nenhuma das partes pode ser ignorada. Não podemos deixar que seja o presidente Marcelo a ficar com o cognome de afetuoso, temos que disputar esse título porque os afetos também são revolucionários como é o combate à depressão, à possibilidade do suicídio e à ansiedade. Os nossos sentimentos importam.

“Agora, entre meu ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu” Criolo em Boca de Lobo

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