A caça ao “identitarismo” como forma de aliança ideológica com a burguesia: um debate necessário

Eu sou uma das pessoas que advoga veementemente que o debate sobre as acusações de “desvios identitários” é necessário porque constitui ou um avanço ou retrocesso na luta da classe trabalhadora. Através dele podemos dar um ou mais passos adiante no sentido de rompimento com a expressão das relações ideais da classe dominante. Posto isto, deixo aqui um contributo no sentido do que creio ser a abordagem correta à tendência de capitulação à ideologia burguesa que move algumas correntes de pensamento à esquerda no que toca à maneira como devemos encarar a preponderância de certas formas de luta e debates atuais. Aproveito para deixar escrito que o meu único objetivo é mesmo contribuir de forma positiva para o avanço do nosso debate para que possamos ser mais fortes.   

Estou convencida de que essa caça orquestrada ao que é denominado de “políticas identitárias” e “identitarismo” não é mais que a racionalização e tentativa de dar vestes revolucionárias às tendências mais conservadoras da sociedade burguesa. Mas este debate, apesar de tudo, não só não é novo como não nos faltam apoios na sua conclusão e condução. A ideia de universalidade das ideias da classe dominante e dos seus indivíduos já nos era apontada nos finais do séc 19 por Marx e Engels:   

“As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as ideias do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante também têm, entre outras coisas, consciência, e daí que pensem; na medida, portanto, em que dominam como classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua extensão, e portanto, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como produtores de ideias, regulam a produção e a distribuição de ideias do seu tempo; que, portanto, as suas ideias são as ideias dominantes da época.”

Marx e Engels em “A ideologia alemã”

Assim como os aspectos mais simples da nossa vida em sociedade são determinadas e limitadas pelas concepções da burguesia, também a determinação do que é a classe trabalhadora e de quais são as formas de luta e teoria válidas passam por esse processo, daí o imaginário do trabalhador ser tão facilmente associado a um operário fabril, branco, heterossexual e europeu filiado num sindicato. Daí existir tanta facilidade em identificarmos a luta no campo laboral como a que deve ser privilegiada entre trabalhadoras, porque a sociedade burguesa é construída com a centralidade das relações nas relações de produção. Nada disto é místico ou natural. Não estamos a falar de demonização desse indivíduo nem dessas formas de organização quando identificamos essa particularidade, estamos a atentar à forma como as ideias da classe dominante nos moldaram e moldam. Estamos a fazer o que dizemos a toda a hora que fazemos: uma análise materialista e dialética da realidade.

 

“A verdade é que a civilização dita “europeia”, a civilização “ocidental”, tal como a modelaram dois séculos de regime burguês, é incapaz de resolver os dois problemas maiores a que a sua existência deu origem: o problema do proletariado e o problema colonial; que, essa Europa acusada no tribunal da “razão” como no tribunal da “consciência”, se vê impotente para se justificar; e se refugia, cada vez mais, numa hipocrisia tanto mais odiosa quanto menos susceptível de ludibriar. A Europa é indefensável.”

Aimé Césaire em Discurso sobre o colonialismo 

Existe uma fundamentação extremamente colonial e racista incutida nessa percepção que temos da própria constituição da classe trabalhadora. A ideia do indivíduo (cidadão) universal como o indivíduo referenciado na branquitude europeia e que irá desenvolver as suas melhores qualidades dentro desse marco foi uma ferramenta ideológica essencial para a constituição do capitalismo e estabilização da burguesia como dominante. A visão do mundo como sendo dividido entre brancos e não-brancos é exatamente isso. É a transformação em universal de uma relação idealizada pela burguesia e, por isso, por ter alguma facilidade em identificar esse processo, é que não me espanta que sejamos nós, pessoas racializadas, mulheres e LGBTIs, a sermos taxadas de identitárias e não os indivíduos tidos como universais. Mas o branco europeu não é universal, os processos de usurpação, genocídio e violações, escravidão e extração de mais valia não são naturais. A essencialização do branco como universal não é natural mas é fundamento ideológico para a afirmação de um lugar de poder de uma minoria da população mundial. Assim como o racismo e sua idealização serviram como ferramenta para tornar viável a construção e manutenção de uma determinada ordem social burguesa cuja principal função é gerar lucro, também a acusação de “identitária” ou de “desvios identitários” servem, em última instância, para fazer perpetuar as dinâmicas que sustentam a produção e reprodução de indivíduos, bem como a exploração e super exploração da força de trabalho, produção de mercadorias com centralidade das relações sociais e extração de lucro. Sabendo disso, digo sem pudores que os identitários são os brancos europeus, são os nacionalistas e os conservadores.  

Não é do meu interesse debater o fim do racismo, machismo ou lgbtfobia finalisticamente. Não é do interesse dos levantes feministas iniciados em 2017 fazê-lo. As revoltas e levantes de pessoas racializadas, dirigidas por negros e negras, mas com presença de povos originários e povos ditos ciganos, não nos passaram a mensagem de estarem iludidas quanto ao carácter estrutural do racismo, machismo e LGBTIfobia. Por isso digo, mais uma vez, que encarar o debate sobre a estrutura da sociedade burguesa na sua amplitude, ultrapassando noções economicistas e reducionistas é a melhor maneira de tornar a luta da classe trabalhadora mais forte.  

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