(traduzido do artigo da autoria de Chandler Dandridge, publicado na Jacobin a 12 de Fevereiro 2023, https://jacobin.com/2023/02/george-orwell-1984-prager-university-socialism/ )
George Orwell era um socialista assumido. As leituras erradas da direita dos seus livros como “O Triunfo dos Porcos”” e “Mil novecentos e oitenta e quatro” têm menos a ver com seu trabalho real do que com a agenda anti-igualitária dos conservadores.
A literatura é o nosso património comum. Livros e autores não pertencem a ninguém em particular – eles são livres para serem lidos, apreciados e interpretados por todos. No entanto, todo o leitor ávido sabe como é reivindicar ou identificar-se com uma obra ou corpo literário, para depois e não poucas vezes, ter de se contorcer com sua apropriação indevida ou uso indevido. Para a esquerda, poucos autores inspiram tanto essa resposta quanto George Orwell, um autoproclamado socialista democrático cujos livros são rotineiramente usados para minar a visão política pela qual ele literalmente lutou. (1)
Estar na esquerda e amar Orwell significa suportar tentativas oportunistas de manipular o seu trabalho para fins reacionários. Nos últimos setenta e cinco anos, a direita divertiu-se roubando o túmulo de um dos grandes artistas da esquerda. Mas é difícil não nos indignarmos de novo ao sermos confrontados com a notícia, por exemplo, de que Orwell apareceu nas listas de leitura compiladas por figuras como Ben Shapiro ou pela Prager University.
Claro, Orwell não é uma figura incontroversa entre os socialistas. Sua oposição ao estalinismo era louvável, mas pouco antes de morrer, ele chegou ao ponto de criar uma lista para o Departamento de Pesquisa de Informação da Grã-Bretanha que listava escritores e figuras culturais que ele considerava “brandos” demais com o “comunismo”, afim de impedir a sua empregabilidade na agência governamental. Ainda assim, naquele mesmo ano, o próprio Orwell estava no seu leito de morte a escrever para publicações americanas para defender o seu último romance, “Mil novecentos e oitenta e quatro”, do “sequestro” daquela obra por “guerreiros” ideológicos em ascensão da Guerra-Fria, que o liam como um ataque às ideias socialistas.
Se Orwell tivesse passado dos 46 anos, podemos apenas imaginar que a sua a forte defesa do referido romance e seu compromisso contínuo e firme com o socialismo democrático poderiam ter reformulado o seu legado na actualidade.
Mas a discussão do clube de livro da Prager University (2) sobre “Mil novecentos e oitenta e quatro” faz com que a sala do décimo ano da escola onde li o livro pela primeira vez, pareça tão sofisticada quanto o debate Michel Foucault–Noam Chomsky. Dave Rubin e Michael Knowles oferecem algumas análises tão superficiais quanto banais, e elogiam a capacidade de Orwell de pensar e escrever com clareza, mas não mostram nenhuma curiosidade sobre os fundamentos do seu pensamento. Para os meninos da Prager, “Mil novecentos e oitenta e quatro” é sobre liberdade e “o que significa ser humano”.
Muito bem – mas Orwell não era, como eles afirmam, um “individualista” no sentido libertário do termo. Este é o cerne do fracasso da direita em compreender Orwell como um todo. O seu trabalho fala-nos certamente sobre o florescimento individual e as tentativas da sociedade em restringi-lo, mas Orwell reafirmou a sua devoção ao socialismo democrático e ao coletivismo em todas as direções possíveis e em termos inequívocos.
Rubin ansiosamente faz a conexão entre a descrição de “Mil novecentos e oitenta e quatro” do governo totalitário censurando e reescrevendo livros, como sendo uma tendência, supostamente exclusiva da esquerda, do “politicamente correto”. Ele identifica como “anti-humano ser tão contra o pensamento”. Talvez sim, mas a sua hipocrisia é flagrante: Rubin é o mesmo que elogiou as manobras políticas do governador da Flórida, Ron DeSantis, bem como o seu próprio objectivo para banir livros (3). O que quer que Orwell tenha pensado sobre a “cultura do cancelamento”, ele sem dúvida opor-se-ia veementemente aos esforços de DeSantis para suprimir as ideias socialistas nas escolas públicas da Flórida. (4)
Shapiro tenta encobrir os compromissos políticos declarados de Orwell, afirmando que o autor “não entendia o socialismo ao nível económico” (5). Essa crítica é confusa, pois Orwell não era um economista – os seus romances são obras de arte que falam das dimensões políticas da condição humana, não tratados marxistas sobre o funcionamento dos mercados. Ignorar a política de Orwell com base no facto de que seu trabalho negligencia ou não fornece uma teoria económica unificada da propriedade pública é como afirmar que Sally Rooney não é de esquerda porque os seus romances não explicam de forma abrangente a teoria do valor-trabalho.
Dito isto, há muitas evidências na obra de Orwell sobre a sofisticação de seu pensamento político e económico. Orwell era um romancista apologético: ele odiava pelo menos dois de seus livros, “Keep the Aspidistra Flying” (“O Vil Metal”) e “A Clergyman’s Daughter” (“A Filha do Pároco”), e considerou cessar as suas republicações. Não são o que eu chamaria de leituras agradáveis, tal como “Mil novecentos e oitenta e quatro” não é, mas são melhores do que o seu autor os considerava e são livros que valem a pena, especialmente para nós da esquerda. Neles Orwell é positivamente consumido por questões económicas (ele raramente não é). Seus personagens preocupam-se com os seus bolsos a toda a hora, e Orwell deixa claro que, embora isso não garantisse a felicidade total, o seu sofrimento psicológico e físico seria muito aliviado se não fossem os infortúnios causados pelas suas dívidas e baixos rendimentos. Esse é um ponto que a direita não entende: o dinheiro pode não comprar a felicidade, mas certamente pode ajudar no pagamento da próxima consulta médica, deixando-nos com um pouco mais de liberdade para cuidar dos assuntos do espírito.
No seu excelente ensaio “Podem os socialistas ser felizes?” (6), Orwell descreve aspectos da sua visão do socialismo. Para ele, não há utopia definitiva. A felicidade total e a resolução de todos os conflitos não são o objetivo final do socialismo. “O que pretendemos” pergunta ele, “se não uma sociedade na qual a caridade seria desnecessária?” Ele continua descrevendo um mundo onde as pessoas não precisam sofrer eternamente com pernas tuberculosas não tratadas, e onde a fortuna de Ebenezer Scrooge é inimaginável. Se “Mil novecentos e oitenta e quatro” é presciente, os ensaios de não-ficção de Orwell são igualmente atemporais: ele poderia muito bem escrever sobre o flagelo do sistema de saúde americano, e as desigualdades cada vez maiores do século XXI.
As “joias da coroa” no cânone “esquerdo” da obra de Orwell são os seus escritos jornalísticos literários: “Down and Out in Paris and London” (“Na Penúria em Paris e em Londres”), “The Road to Wigan Pier” (“O Caminho para Wigan Pier”) e “Homage to Catalonia” (“Homenagem à Catalunha”). Este último, é considerado por Noam Chomsky como a sua obra-prima e é com certeza uma das mais notáveis obras de reportagem de guerra já escritas. “Na Penúria em Paris e em Londres” é uma leitura gratificante e uma forte afirmação pela melhoria das vidas dos moradores pobres e da classe trabalhadora de ambas as cidades que dão nome ao livro. “Wigan Pier” critica os liberais de classe média na Grã-Bretanha de meados dos anos 30, ao confrontar o leitor com as terríveis condições dos trabalhadores industriais do norte da Grã-Bretanha.
Orwell era profundamente crítico de muitos elementos da Esquerda. Ao mesmo tempo em que pedia que o Estado fiscalizasse a produção e distribuição de alimentos, advertia contra o abuso desse poder. Essas críticas são como um presente para os socialistas democráticos contemporâneos enquanto buscamos construir um movimento que evite repetir os erros do passado, mas também tornaram mais fácil para a direita aproveitar-se do seu legado. No entanto, é a complexidade e a atenção de Orwell às contradições políticas que fazem valer a pena lutar pelo seu legado.
Novamente, Orwell não é um autor fácil de ler. “Mil novecentos e oitenta e quatro” é um livro sombrio. Os seus primeiros romances pecam por algum exagero. E se como eu, vocês atreverem-se a ler os seus diários, preparem-se para centenas de páginas detalhando o clima triste e a monotonia do seu jardim inglês. Existem muitas contradições na sua obra, mas uma coisa é certa: ele nunca vacilou na sua adesão aos princípios do socialismo democrático.
Orwell não era um individualista no sentido libertário; longe disso. “O verdadeiro objetivo do socialismo”, escreveu ele no seu ensaio sobre a felicidade, “é a fraternidade humana”. Quem tem irmãos sabe que às vezes é preciso discutir com eles, chamá-los à atenção, tirar-lhes os seus brinquedos para mostrar como eles devem ser usados. As suas críticas a vários elementos da esquerda eram um assunto de família.
E quando os reacionários tentam saquear a herança da nossa família, não temos outra escolha que não seja a de reivindicar o seu legado.
1 – https://jacobin.com/2017/05/george-orwell-spain-barcelona-may-days
2 – https://www.youtube.com/watch?v=SbTQJGxk95o
3 – https://www.youtube.com/watch?v=SMz6W0Rjfss