O Balanço de Marta Temido

Costuma-se dizer que em política não há vazios. Pela mesma lógica, na ação governativa não há omissões. Quando algo não é feito, independentemente das intenções, está-se igualmente a seguir uma orientação política; quando uma governante (alegadamente) não consegue impor uma política ao seu governo, mantendo-se no cargo a aplicar uma política de que tem reticências, essa é a sua política, a que aplica. A política aplicada na saúde nos últimos anos não se distingue, do ponto de vista estratégico, da dos governos anteriores, do PS ou da direita: desinvestimento líquido, desvalorização dos profissionais de saúde, financiamento massivo dos privados com dinheiro público. Ou seja, redução progressiva do SNS, alimentando um crescente e parasitário negócio da doença (pois o privado nunca lucrará com a saúde, apenas com a doença).

Essa foi a política de Marta Temido: impedir uma reforma do SNS que o revalorizasse, que o salvasse da degradação em curso, que evitasse que o privado continuasse a engordar à sua custa. A ministra, admita-se, não só operou por omissão: a forma como interveio sobre a nova lei de bases da saúde, em benefício dos privados, é elucidativa. Podemos especular sobre as suas intenções, preferências e características pessoais. Mas a sua política foi a que ela aplicou.

Aliás, o trágico caso que leva à sua demissão e, de modo mais geral, a degradação rápida e gravíssima dos serviços de obstétrícia, são, em si mesmos, o balanço da sua ação. Não por acaso, o negócio dos partos é um dos mais apetecíveis para os hospitais privados e seguradoras, que avançam sobre ela com voracidade. Num país em que o SNS foi responsável por uma revolução nesta área, eliminando problemas históricos, nomeadamente o da mortalidade infantil, essa ofensiva só pode acontecer à custa da degradação dos serviços públicos de obstétricia. Esse negócio de milhões só vinga sacrificando a saúde – e a vida – das mulheres que não podem recorrer ao privado, assim como a carteira daquelas que para lá são empurradas. Não por acaso, neste contexto, se desenvolveu um movimento crescente contra a violência obstétrica. A crise do SNS é a crise da reprodução social, tendência inexorável do mundo neoliberal em crise e da política de António Costa e Marta Temido.

Embora seja compreensível que a figura de uma ministra determinada, resoluta e com força política gere simpatia entre as mulheres e em quem tem aspirações feministas, é o balanço político que fica. A morte de uma grávida, imigrante, não só é a gota d’água que levou à demissão da ministra, mas sim o mais gráfico e grave balanço da sua passagem pelo governo.

Se apesar disto, fica na memória a gestão de Temido durante a pandemia, há que salientar duas coisas: uma é que, sim, as características pessoais contam, e Temido nesse contexto, revelou força, flexibilidade e capacidade política; outra é que a relativamente boa prestação do SNS e do país no combate à pandemia devem-se a questões mais de fundo. Uma é qualidade do SNS e dos seus profissionais, que subsiste como o eco mais forte da revolução de 74-75 e que, por isso, tem, apesar de tudo, resitido ao desmantelamento e privatização. Outra é que, à data, havia uma maioria de esquerda no parlamento e um contexto político que ainda pendia à esquerda e que pressionava, de diversas formas, para uma gestão da pandemia assente em políticas públicas fortes e na centralidade do SNS. Por fim, foi a consciência solidária do conjunto da população, ainda alicerçada numa valorização dos bens comuns – valores que o liberalismo individualista se esforça por minar – que permitiu e condicionou a política de combate ao Covid-19 aplicada pelo governo e cujo rosto foi Marta Temido.

A simpatia, compreensível, que muitas e muitos nutrem pela ex-ministra, não deve apagar isto. Porque centrarmo-nos em governantes particulares e não as grandes linhas políticas como explicação da crise do SNS (e da eventual resistência à mesma) não nos dá força para a debelar. Como assinalou Catarina Martins, não se trata de mudar de ministra, mas de política. E para isso será necessário um grande movimento social, que alie profissionais de saúde ao conjunto do povo, em defesa da saúde pública.

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