Os ângulos mortos dos anti-identitários

O que acontecia é que os brancos haviam roubado a música aos negros. Toda a música [pop-rock] assenta sobre esse roubo. Diziam que os Rolling Stones roubavam, mas pelo menos eram heróis, pois confessavam o roubo. Muita da música feita nesses anos assentou numa expropriação. […]
Em geral, a música pop e rock nasceu de um saque. E escondia-se a música negra como se ela nos fizesse mal, tentando torná-la mais agradável.

Miguel Esteves Cardoso em entrevista ao Ípsilon (05.08.2022)

Já passaram 24 horas desta entrevista a Miguel Esteves Cardoso (MEC) e ninguém ainda rasgou as vestes. Estranhamente, a acusação de que o cronista quer cancelar os Stones não foi ainda esgrimida. O espectro do wokismo identitário não foi assinalado. Estas palavras contra a apropriação cultural, as menos diplomáticas que lemos na comunicação social recentemente, não despertaram a ira dos fiscais anti-identitários. Parecem ter sido enunciadas a partir de um angulo morto, escapando à excitada vigilância dos observadores do costume.

O que explica isto?

Com maldade, poder-se-ia dizer que tal acontece porque os inspetores da direita conservadora não leem suplementos culturais e têm horror ao Ípsilon. Ou que MEC se beneficia de um estatuto ímpar, blindado à direita pelos anos de Independente e à esquerda pela inteligência e abertura de espírito, passando assim entre os ácidos pingos da chuva politicamente incorreta.

Certo é que se as mesmas palavras fossem enunciadas por uma ativista negra no Instagram ― aliás, mesmo que mais veladas e cuidadosas ― os artigos irritados e os posts ofensivos contra o politicamente correto, a cultura do cancelamento, o wokismo, o lugar de fala floresceriam.

MEC, ao contrário de tantos que com ele simpatizam, dá-se ao luxo de se expressar assim porque o seu privilégio de classe (assumido, de resto) lhe garante suficiente autossegurança para não sofrer de pânicos ideológicos. Não se sente cercado, nem com o posto em perigo por nenhuma suposta substituição. Beneficia, claro, do privilégio de ser branco, que o resguarda. Mas mais do que isso: está fora dos radares da campanha conservadora em curso (a tal que não consegue decorar o LGBTQIA+ e que, do dia para a noite, virou fã das tranças da Rita Pereira). Isso diz-nos mais sobre tal campanha anti-identitária do que sobre MEC.

Uma campanha contra o ativismo

Não são apenas as particularidades de MEC ― do seu lugar de fala ― que o resguardam da excitação conservadora. É o seu distanciamento da luta política, do ativismo, a que são meramente tangentes as suas opiniões, que o fazem. MEC analisa, não prescreve; acusa, mas não conclui. E está no seu direito. Mas os fiscais do politicamente incorreto, ultrassensíveis, por sinal, se fossem intelectualmente honestos fá-lo-iam por ele. Destacariam distorcendo e exagerando, como é seu apanágio, as inevitáveis conclusões políticas e morais dos comentários citados. É nisso que se empenham sempre que quem enuncia críticas semelhantes é negro ou negra e/ou activista antirracista: de uma análise aberta, sempre concluem uma proibição que lá não está, uma censura que ninguém quer, um cancelamento que ninguém propõe ― agora os brancos já não podem usar rastas nem traduzir poetas negros, valha-nos Santa Engrácia!.

Reparei na existência destes ângulos mortos do anti-identitarismo a propósito da recente biografia de Fernando Pessoa da autoria de Richard Zenith. Um dos traços transversais da obra, uma marca quase obsessiva ao longo das suas 1100 páginas, é a análise da sexualidade do poeta. Não só são destacados, como já outros haviam feito antes, os evidentes traços de homoerotismo na poesia pessoana. É escalpelizada ao pormenor a sua sexualidade na vida real. Além da faceta bissexual do poeta, é retratada, em termos quase butlerianos, a fluidez inconstante da sua sexualidade, marcadamente queer. Zenith não faz por menos. Destaca como a Olisipo, efémera editora fundada e dirigida por Pessoa, «foi a primeira editora gay de Portugal, se é que não foi a primeira da Europa». (Pobres nacionalistas, presos à sua agenda LGBTfóbica, impossibilitados de exaltar mais esta evidência do pioneirismo luso!). A biografia revela mesmo que o único momento da vida do poeta (1923-24) em que a sua atitude política se mostrou ativa e empenhada fora da escrita foi quando, assumindo o papel do que hoje chamaríamos ativista LGBT, combateu a «campanha homofóbica da Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa» que recaía sobretudo sobre o seu amigo, o poeta Raul Leal. É assinalável como este aspeto do livro de Zenith passou ao lado da crítica, apesar de ser um dos temas, se não o tema, centrais da obra.

Tal como MEC, Zenith falou a partir de um angulo morto. Não só não foi atacado como, dá ideia, não terá sido sequer lido. Quero dizer: alguns dos doutos fiscais conservadores, que desde Amanda Gorman a Irma dominam o panorama cultural, terão lido a aclamada biografia. Mas tê-lo-ão feito com lentes que os tornam cegos à perspetiva identitária nela transversal: o que para eles é invisível, assim permaneceu. Para eles, a emergência das identidades subalternas só merece combate quando vinda dos próprios subalternos; quando é afirmação e não apenas constatação. Sabem que só aí ela serve a luta política e social e isso causa-lhes pânico, por isso procuram freneticamente silenciá-la. São cegos face ao diferente, mas hiper-sensíveis ao ativismo.

A defesa da cultura não mora aqui

Isto diz-nos algo sobre a disputa política que hoje se dá no terreno da cultura. Desde as diatribes sobre quem pode traduzir o quê, ao pavor da linguagem inclusiva, passando pelas tranças e gingados, o que está em causa nada tem a ver com o amor à cultura, menos ainda à irrestrita liberdade das artes. Estes são apenas tropos instrumentalizados. Fica clara uma tolerância hipócrita (cujas raízes raízes são antigas) com a dissidência que não se assume como tal, desde que discretamente protagonizada por gente de bem, de boas famílias ou academias.

Quando é trazida a terreiro, nestas disputas, a defesa da liberdade de expressão e das artes, o alvo é outro. É o movimento antirracista; são as feministas; é o ativismo LGBTIA+. E a intenção, consciente ou intuitiva, é a de os combater num terreno aparentemente apolítico e desligado da luta social: o da cultura, onde supostamente não há classes nem interesses, mas apenas uma magma viscoso que cimenta a nação. Trata-se de uma despolitização de um debate político, com objetivos políticos e em prol de uma agenda política como com expressão partidária. Por isso se centra em polémicas inócuas e em acusações que nunca foram feitas, combatendo censuras e cancelamentos que nunca foram tentados, ao mesmo tempo que deixa MEC e Zenith em paz, que são bons rapazes.

É verdade que esta campanha acaba por arrastar muita gente que está longe, e até sinceramente contra, a agenda reacionária que a promove, mas que ingenuamente lhe dá eco. Fazem um desfavor a si mesmos, antes de mais, e ao movimento, mesmo sendo a sua intenção a oposta.

O debate sobre cultura é essencial. A liberdade transbordante, a crítica sem preconceitos, a ausência de moralismos, a irrestritabilidade temática e mesmo a abertura à ambiguidade moral e política são definidoras da arte e da cultura. Não quer dizer isto que estas estejam à parte da disputa política, mas que não se medem pela mesma régua. Este é o critério de uma política emancipadora na defesa e promoção da arte e da cultura.

«Toda a liberdade em arte» defendiam Trotsky e Breton, contra reacionários e estalinistas. Liberdade total e crítica total, abertas à evolução e ao movimento, sem vacas sagradas. Eis o que queremos neste terreno. Por isso, não nos enganemos: as paranoias recentes contra o dito lugar de fala e o chamado cancelamento mobilizam-se contra estes critérios, não a favor deles.

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