Os incêndios sempre aconteceram?

Todos os anos o país é assolado por incêndios rurais. A tragédia repete-se em loop com centenas de hectares devastados, habitações destruídas, meios de subsistência desmantelados, perda de vidas e um leque de experiências traumáticas que compõem a memória individual e colectiva. Todos os anos os incêndios abrem feridas de norte a sul e todos os anos as respostas dadas são insuficientes frente à calamidade. A inevitabilidade é prato do dia, servido acompanhado de uma responsabilização individual das pessoas e a sobremesa é sempre um “para o ano estaremos mais preparados”. 

Os incêndios são mesmo inevitáveis?

Até a década de 60 os incêndios em Portugal não eram considerados um problema, devido à extensão diminuta da área ardida e às características dos próprios incêndios (1). Faziam parte sobretudo da renovação natural dos ecossistemas. Porém, a partir dos anos 70 regista-se um incremento do número de incêndios e um aumento exponencial de hectares ardidos. Curiosamente este aumento coincide com as políticas dos governos no que toca ao plantio de árvores não autóctones. 

É preciso entender que a gravidade e a dimensão dos incêndios florestais em Portugal se deve, sobretudo, ao tipo de floresta que existe. A monocultura começou a ser traçada nos anos 50 e 60, com a destruição dos baldios para criar florestas para a indústria da celulose. As árvores autóctones – carvalho, medronho, sobreiro, azinheira – foram sendo substituídas por duas espécies mais rentáveis, o eucalipto e o pinheiro. Mais tarde, no primeiro governo de Cavaco Silva (1987), o então ministro da Agricultura defendeu o abandono da agricultura a troco de indemnizações e o da Indústria e Energia defendeu a “eucaliptização” do país, afirmando que os eucaliptos eram “o nosso petróleo verde”.

Os sucessivos governos, patrocinados também pela UE, pagaram para que se abandonasse a agricultura ao mesmo tempo que incentivavam fortemente a monocultura do eucalipto. A PAC (Política Agrícola Comum) foi a principal responsável pela destruição da produção agrícola, condenando o interior do país ao definhamento demográfico e económico, que se agravou com o desmantelamento da ferrovia, o fecho das unidades de saúde, escolas, privatização e desmembramento da Rodoviária Nacional etc.

Ao longo dos anos, os governos, tanto do PSD/CDS  como do PS, aplicaram uma série de medidas que liberalizaram a plantação de eucaliptos e facilitaram a permanência e o crescimento da indústria criminosa da celulose, culminando no cenário atual, em que Portugal é o país com maior área plantada de eucalipto na Europa, ocupando o 5.º lugar a nível mundial (2). Sabemos hoje que a área ardida média anual em Portugal mais do que duplicou face ao decénio 1980-1989 e que estamos perante o que os especialistas chamam de incêndios de sexta geração, velozes, intensos, muito difíceis (ou impossíveis) de extingir, liberando tanta energia que conseguem alterar as características meteorológicas (3). 

Ao longo destes anos ocorreu um desinvestimento sucessivo nas entidades de planeamento e ordenamento do território, bem como da protecção civil.  Medidas como o fim do Corpo Nacional da Guarda Florestal, a fusão de institutos e organismos que tinham que ver com a protecção civil e ordenamento do território em nome da redução da despesa pública, a redução sucessiva do número de bombeiros, profissionais e voluntários, medidas estas que vão no sentido totalmente contrário às necessidades atuais de controlo e combate dos incêndios. Já vimos este ano, à semelhança da trágica noite de 15 de Outubro de 2017, que há populações que não chegam a receber apoio dos bombeiros nas situações de incêndio rural simplesmente porque não existem meios suficientes. 

Cortar o mal pela raiz

Vivemos um cenário caracterizado pelas alterações climáticas, com ondas de calor cada vez mais frequentes, períodos de seca extrema (que transformam a vegetação em combustível), incêndios a acontecer em regiões que não estão habituadas e, por isso, menos preparadas para os enfrentar. Também por isso é ainda mais urgente cortar o mal pela raiz e reverter a floresta em Portugal. Não dá para continuar a tapar o sol com a peneira. 

É necessário combinar o combate às alterações climáticas com a luta por uma floresta autóctone e por meios de proteção civil adequados, que garantam a salvaguarda de toda a população. É urgente o fim dos negócios com os privados, o fim das concessões absurdas à indústria da celulose, a canalização dos fundos das forças militares para a prevenção e combate dos fogos e a nacionalização de zonas florestais, bem como dos sistemas de comunicação de emergência.

Sabemos que estamos a enfrentar os verões mais frescos do resto das nossas vidas e os cientistas avisam, constantemente, que olharemos para estes incêndios como moderados dentro de uma ou duas décadas (4). Temos pressa. Não há planeta B.

(1) https://florestas.pt/conhecer/fogo-a-evolucao-dos-incendios-rurais-em-portugal/

(2)  tinha, em 2021, cerca de 10% da superfície do território continental coberta com eucalipto

(3) o primeiro foi registado nos anos 80

(4) https://www.publico.pt/2022/07/21/azul/noticia/explicador-alteracoes-climaticas-provocam-ondas-calor-incendios-florestais-2014474

2 opiniões sobre “Os incêndios sempre aconteceram?

  1. Artigo certeiro neste grave momento climatológico em Portugal.
    A implantação de monocultivos de eucalipto para a produção de papel e celulose cria o chamado deserto verde, que leva às consequências trágicas que se está a viver.

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  2. Denúncia certeira, no conteúdo e no tempo, em face da grave situação ambiental ora vivenciada e de suas causas e implicações.
    O monocultivo de eucaliptos para indústria de papel e celulose é também conhecido como deserto verde implantado.

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