Sabiam que o crime mais cometido em Portugal é o crime de violência doméstica?
Alguns números: em 2020 foi o crime mais reportado em Portugal, contabilizando-se, em média, 2300 queixas por mês, o que dá cerca de setenta e cinco queixas por dia, três a cada hora. No ano corrente, entre Janeiro e Maio, foram registrados 6200 crimes de violência doméstica, uma média de 41 crimes por dia.
Se atentarmos aos assassinatos, vemos que em 2019 perdemos 26 mulheres vítimas de violência doméstica, em 2020 registaram-se 27 assassinatos de mulheres, ao passo que em 2021 foram 16 mulheres assassinadas e até Junho deste ano já foram mortas pelo menos 16 mulheres (sabemos que em Junho a cada cinco dias houve um assassinato).
Olhando para as condenações e detenções, vemos uma grande discrepância. Até ao momento, em 2022, embora o número de queixas esteja nos milhares, só ocorreram 354 detenções pelo crime de violência doméstica. Entender esta diferença nos números é essencial para traçar políticas efetivas de combate à violência. Evidementemente o combate à violência de género não deve ter um viés punitivista e prisional, porque o problema não se resolve prendendo agressores, mas sim investindo de forma multifacetada em todos os serviços de apoio à vítima, melhoria dos serviços nas comunidades, programas de reabilitação etc. Contudo, é importante também entender que, mesmo para uma saída punitivista, o sistema não funciona.
Embora tenha havido um ligeiro decréscimo das queixas durante o período da pandemia, os números mostram que a quebra deve-se, muito provavelmente, à dificuldade de reportar situações de violência, ao medo e ao isolamento fruto das situação de confinamento e não se relaciona com uma diminuição efetiva das ocorrências. Daí ser expectável que os números se avolumem, ao que se soma também um período de crise devido à recuperação da COVID-19, à inflação e ao crescimento de uma agenda reacionária e retrógrada a nível mundial.
Estamos perante um problema muito grave, que mais parece uma pedra mestra na nossa sociedade – a violência de género, onde cabe a violência doméstica – muito naturalizada e com imensas ramificações diferentes. Os números por si só já demonstram a profundidade do problema – e atenção! os números que se conhecem devem ser a ponta do iceberg. Algumas das armas da violência de género, para além da sua naturalização, são o silenciamento, a vergonha e a individualização do problema.
Sobre os crimes reportados, sabemos que cerca de 80% destes acabam arquivados, o que à partida será um grande dissuasor de novas queixas e que traduz a ineficácia dos processos de denúncia e proteção das mulheres, de justiça e de reabilitação. É absurdo achar que 80% das queixas não são válidas. Arquivar têm geralmente como base a falta de provas – porque a mulher em questão não quis avançar – colocando mais uma vez o ónus de resolver o problema nas costas da própria pessoa violentada. É muito importante alargar o que é considerado prova do crime e alterar os procedimentos de forma a que os processos deixem de se basear apenas nos relatos da vítima, havendo uma análise exploratória e recolha de provas por parte do sistema judicial.
Desde o início da queixa até ao fim as mulheres são deixadas à sua sorte, sem mecanismos de proteção que deveriam ser implementados rapidamente nas horas que se seguem à queixa, como medida preventiva e de proteção. Sabemos que a maior parte dos crimes graves e dos assassinatos são situações previamente sinalizadas – ou seja – estas mortes podiam ser evitadas. O sistema judicial tem as mãos manchadas de sangue também, por falhar sucessivamente e por permitir situações como a da juiz Neto Moura ou mais recentemente a juiz do Tribunal da Parede, que não considerou crime de violência doméstica o ato de arrastar uma mulher pelos cabelos pela rua (por parte de um homem da qual já tinha sido feito queixa).
Estamos perante um problema muito grave, que não merece a devida atenção por parte de quem constrói políticas, faz leis e organiza o sistema judicial (por exemplo, o OE para 2022 não comporta uma seção específica para combate à violência de género ). Há muitas medidas a implementar – sugestões, propostas e exemplos não faltam. O que falta é vontade política de enfrentar um modus operandi que deixa as mulheres vulneráveis, expostas a todo tipo de violência, com o mínimo dos mínimos de apoio.
Reforço – a violência doméstica e a violência de género em geral não são um problema das mulheres, para as mulheres resolverem. São problemas sociais, económicos e culturais que devem ser atacados em todas as frentes para que nem mais uma morra às mãos de um agressor, para que nem mais uma mulher tenha que ter medo do seu (ex)companheiro, para que nem mais uma criança veja a sua mãe agredida, para que nem mais uma mulher tenha que respirar fundo e aguentar porque não vê saída.
A falta de vontade política de investir seriamente para resolver problemas deve ser continuamente exposta, para deixar visível a hipocrisia. Não se lembrem de nós somente quando uma é morta. Não nos mencionem só no dia internacional da mulher. Não nos chamem para ocupar lugares de destaque para parecerem modernos. Queremos investimento na nossa proteção, queremos gabinetes de apoio em todas as zonas do país, de fácil acesso, com pessoal formado e capacitado para ajudar. Queremos apoio psicológico ao longo de todo o processo e queremos pessoal jurídico especializado em questões de violência de género, racismo e LGBTfobia, para que as nossas vidas não sejam postas em causa.
Lutamos pelo nosso direito a viver, a viver sem medo. Lutamos pelo nosso direito à existência. Juntamos as nossas vozes às de todas, todos e todes as pessoas oprimidas e gritamos bem alto – Parem de nos matar! As nossas vidas merecem ser protegidas. Nós merecemos viver.