[Existe acordo sobre] a necessidade reivindicações transitórias, a política de alianças (frente única) a lógica de hegemonia e da dialética (e não antinomia) entre reforma e revolução. Estamos, portanto, contra a ideia de separação entre um programa mínimo (antineoliberal) e um programa máximo (anticapitalista). Permanecemos convencidos que um antineoliberalismo consequente conduz ao anticapitalismo e que os dois se encontram interligados pela dinâmica da luta.
Daniel Bensaid, O Início de uma Novo Debate: O Regresso da Estratégia
A Geringonça: de tática a estratégia
Em 2015, a Geringonça resultou de uma opção tática[1] correta. Sem se comprometer com a participação no Governo, a esquerda ajudou o PS a assumir o executivo, barrando a direita. De outra forma não poderia ter agido: toda a luta das massas desde 2011 ia no sentido de afastar o nefasto governo de Passos e Portas. Caso BE e PCP se recusassem a cumprir um papel útil nessa senda, suicidar-se-iam. Mais: a reversão da austeridade, ainda que parcial, conseguida por esta opção foi muito importante e foi parte de um movimento bem-sucedido que, assente na revolta nas ruas conseguiu, de diversas formas, travar parte da ofensiva austeritária. Quem, ainda hoje, critica esta opção política sem conseguir explicar o que faria de diferente consagra-se ao cómodo papel de treinador de bancada.
O problema, arrisco, foi ter-se feito sentir a ausência de uma orientação estratégica que orientasse esta opção tática correta. E sem clareza estratégica, todas as táticas acertadas revertem no seu oposto. Porque estratégia sempre existe: se não é enunciada de forma clara e consciente, a soma das táticas torna-se ela mesma uma estratégica, fazendo dos necessários desvios momentâneos caminhos de longo curso. Penso que foi isto que aconteceu.
O roteiro enunciado pelos acordos escritos que serviam de base à Geringonça esgotou-se ao fim de dois anos, três no máximo. Esse momento anunciava a necessidade de calibrar a tática o que só poderia ser feito em função de uma orientação estratégica definida. Na ausência desta última, iniciou-se um longo ciclo de gestão de uma aliança com o PS que se ia esvaziando de conteúdo. O que era conjuntural, foi-se tornando prolongado. A excecionalidade tornou-se uma nova estabilidade que dificilmente poderia ser rompida sem custos grandes.
Durante este período não foi clarificado dentro da esquerda qual a aposta estratégica que estava a ser seguida. Mas, de alguma forma, pela lógica das coisas, foi-se cristalizando a possibilidade de que, capitalizando os ganhos evidentes dos primeiros anos de Geringonça, a esquerda continuasse a acumular forças de forma a que fosse possível, mais adiante, forçar uma nova relação, mais paritária, face ao PS. Daí poderia decorrer uma Geringonça 2.0, digamos assim, com a esquerda mais fortalecida e um PS mais à esquerda.
O muro intransponível era, na verdade, o PS. Se a conjuntura resultante das eleições de outubro de 2015 permitiu pressionar este partido a ir além dos seus, a verdade é que essa possibilidade era limitada. Verificou-se que o PS de forma alguma está disposto a reverter as contrarreformas ultraliberais do período da Troika: nem na legislação laboral, nem no terreno da habitação, nem no grosso das privatizações. Isso não decorre de uma relação de forças insuficiente, mas da natureza de classe do PS, independentemente da liderança que a cada momento encabece o partido. A intransigência negocial para o orçamento de 2022, mas também a negação de um acordo escrito (necessariamente assente na reversão de parte destas contrarreformas) em 2019 é disso sinal. A ânsia de Costa, secundada pela classe dominante, em livrar-se dos «empecilhos» à esquerda revela-lo. O PS é o PS, não poderá nunca ser outra coisa.
A ausência de uma alternativa para vencer
Com o prolongamento da Geringonça e a sustentação de Costa feita estratégia por omissão, não se desenhou uma proposta alternativa da esquerda. Não uma proposta programática: essa sempre existiu. Nem uma contestação social ― a greves climáticas e feministas, o movimento antirracista, as lutas de professoras, enfermeiras, operários estivadores estavam na rua e a esquerda com elas. O que não existiu foi a articulação do programa e das lutas numa proposta política que almejasse superar pela esquerda do Governo do PS, com olhos postos no poder, E não existindo, ela não pôde ser comunicada, menos ainda compreendida pelo povo de esquerda.
Se esta alternativa existisse, tudo seria diferente. Se durante este período a esquerda tivesse construído e apresentado uma solução política que pudesse deslocar o PS do Governo em prol de uma Governo de Esquerda, o final da Geringonça poderia ter sido outro. Não digo que de uma tal alternativa nascesse uma vitória segura ― em todas as lutas se pode vencer ou perder. Mas da sua ausência decorreu a impossibilidade da vitória.
Claro que tal proposta exigiria uma aliança entre a esquerda à esquerda do PS, entre si mesma e com os movimentos sociais e sindicais. Só essa configuração política correspondia, na prática, às exigências programáticas que Bloco e PCP levantaram ― reforço do SNS, destroikização da lei labora, transição energética justa. Se esta plataforma existisse, a esquerda teria sustentado Costa da mesma forma que a corda sustenta o enfocado; na sua ausência, deu-se o oposto. Mais: em prol desta alternativa, seria lícito viabilizar o OE de 2022, ganhando tempo para a ofensiva definitiva sobre o PS. Na ausência dessa alternativa estratégica, o chumbo do Orçamento era inevitável, mas foi visto como um salto para o vazio. Após isso, nas eleições, Costa foi visto como o mal menor ― dada a impossibilidade de um governo de esquerda, seria sempre visto como tal.
A comunicação de uma alternativa falhou porque essa alternativa, no que respeita ao que realmente conta, o poder, não existia. Mas ela pode ser construída. A veemência com que o povo de esquerda se mobilizou contra o regresso da direita mostra que há combustível social para a construir. É esse o atual desafio estratégico.
Daqui para diante: um contributo estratégico
Há duas lições que ficam deste período, no que diz respeito às relações da esquerda com o PS. A primeira é no terreno da tática: confirmou-se que é lícito, útil e por vezes obrigatório estabelecer alianças que possam, por um lado, pressionar parcialmente o PS à esquerda e, por outro, ajudar a travar a direita. Tal exige ter por certo que essas alianças são táticas, conjunturais e que têm tando de unidade como de conflito e sempre caminham para a rutura. A segunda é no terreno estratégico, é definidora e estruturante: o PS é um partido dos grandes negócios, uma representação política da classe dominante, a sua natureza não pode ser mudada. Para uma agenda coerente de reformas antineoliberais, o PS não é um obstáculo relativo, mas absoluto. Pelo que terá de ser derrotado.
Conclui-se que possibilidades de alianças pontuais com o PS devem fazer parte do reportório tático da esquerda. Mas também que uma alternativa estratégica, de esquerda, para mudar o país, deve ser erguida em alternativa a este partido. E como não há nenhuma organização que, só por si, possa assumir-se como essa alternativa, daqui decorre a necessidade de alianças à esquerda: entre movimentos, personalidades, forças sindicais e, necessariamente, partidos de esquerda. Esta convergência pode assumir várias formas em diversos momentos, mas é estratégica, ela corresponde à necessidade de unir na sua diversidade um campo político ― a esquerda ― que corresponde a um campo social, também ele plural ― as classes trabalhadoras ― em oposição à classe dominante, aos seus governos e partidos, PS incluído. A isto corresponde uma parte dos elementos que Daniel Bensaid enuncia na epígrafe deste texto. A disputa de uma contra-hegemonia exige uma política de Frente Única da esquerda. Esse anseio silencioso da maioria da nossa base social deve ser compreendido. A atual ofensiva contra a esquerda torna-o premente; e dessa posição defensiva poderá nascer um contra-ataque.
A par disto, existe o programa anticapitalista que transita das bandeiras antineoliberais imediatas para uma perspetiva de rutura sistémica. Não se trata de fazer propaganda contra o capitalismo (embora a devamos fazer!). Mas de radicalizar o programa já existente da esquerda em direção às suas consequências inevitáveis: o enfrentamento com o conjunto do sistema capitalista. Aceitar que as mais sensatas reformas sociais-democratas ― que todos defendemos ― implicam um choque frontal com a política e a economia capitalista, obrigando não a adaptações para que nele encaixem, mas a uma radicalização que, partido da parte, coloca em causa o todo. As bases programáticas para esse exercício estão já assentes pela esquerda e, se se unirem a uma política de Frente Única, os aspetos mais radicais da proposta anticapitalista transformar-se-ão de obstáculos à comunicação de massas em alavancas para a sua mobilização.
Não nos esquecemos do futuro
A nossa ambição socialista excede, ainda assim, todas considerações acima. E para vencermos as pequenas batalhas de hoje não podemos abdicar de sonhar a utopia. Sabemos para onde vamos: a nossa estratégia é a revolução total.
Mas onde encaixamos, hoje, esse sonho revolucionário?
Para o pensarmos, termino retomando os já citados ensinamentos de Clausewitz. Tática e estratégia são termos relativos. A tática está ao serviço de uma estratégia, de um objetivo, «final». Mas numa temporalidade mais ampla, essa estratégia «final» é tática face a um objetivo mais profundo. Unidades pontuais na luta podem ser táticas relativamente à Frente Única da Esquerda; e esta, por sua vez, é tática face à luta por um Governo da Esquerda. Este último, por sua vez, não é, ele mesmo, o Socialismo, mas pode ser tático face à sua persecução. Cada estratégia que enunciamos ― como as propostas feitas nos parágrafos anteriores ― são táticas em função de horizontes mais amplos de luta.
Ao mesmo tempo, isto não deve ser entendido como uma série de etapas necessárias, prolongadas no tempo, pré-estabelecidas pela teoria, que terão necessariamente de ser sucessivamente percorridas. A relação entre as várias fases da luta socialista é movel, dialética, feita de várias temporalidades e tarefas que ora se sucedem, ora se combinam, de forma por vezes lenta, outras vezes aceleradíssima. Como na guerra, a tática deve ser sempre ajustada, mediante a alteração das forças no terreno. A estratégia deve ser igualmente revista, mas sem deixar de ser o que é: a mobilização das forças em jogo em função de vitória.
Na nossa luta ecossocialista, a vitória significa o deslocamento da classe capitalista do poder e o autogoverno da maioria para a maioria, devolvendo a quem trabalha o controlo sobre a produção e a reprodução, distribuindo os frutos do trabalho e restabelecendo os ciclos ecossociais. Isto é: a planificação da produção pelos produtores, em função do bem-estar da sociedade e da biosfera. O Socialismo.
A estratégia Socialista é, assim, a da Revolução. A subversão da ordem existente pela ação direta das classes populares contra o poder da classe dominante. A atual etapa da luta de classes, à escala mundial, é, no entanto, defensiva. Hoje, ofensiva revolucionária dos de baixo é pontual e marginal (ainda que existe, vejamos os anos recentes no Chile) e, quando existe, nasce sempre de lutas defensivas. A estratégia presente da esquerda socialista deve estar ao serviço de reverter essa correlação de forças ― à escala global, mas, desde logo, em cada país. A hipótese de um Governo das Esquerdas, que, a partir de alianças amplas para lutas defensivas, nas ruas e nas urnas, reúna forças para deslocar do poder os partidos capitalistas e implementar um programa de reformas anticapitalistas é a base da reflexão estratégica aqui feita. Escusado é dizer que esse não seria o fim da história, mas o avanço para uma nova etapa de revolução permanente, até à vitória final.
Não sabemos qual a temporalidade destas lutas, que podem acelerar (e também retroceder) devido aos vitórias e derrotas parciais de cada momento. Sabemos que hoje na esquerda temos as bases para construir essa estratégia, com base no debate crítico e na unidade na luta, rejeitando desistências, sectarismos e messianismos. Não queremos nada menos do que o futuro.
[1] Nunca é de mais recordar a definição de Clausewitz, já citada no artigo anterior: «Existem duas atividades absolutamente distintas: a tática e a estratégia. A primeira organiza e dirige a ação nos combates, enquanto que a segunda liga os combates uns aos outros, para chegar aos fins da guerra… A estratégia é o emprego da batalha na guerra; a tática é o emprego das tropas no combate.» Carl von Clausewitz, Da Guerra.