Contributo para pensar a estratégia à esquerda (Parte 1)

Existem duas atividades absolutamente distintas: a tática e a estratégia. A primeira organiza e dirige a ação nos combates, enquanto que a segunda liga os combates uns aos outros, para chegar aos fins da guerra… A estratégia é o emprego da batalha na guerra; a tática é o emprego das tropas no combate.

Carl von Clausewitz, Da Guerra.

Passados três meses das eleições legislativas, no âmbito de um debate mais amplo sobre a estratégia da esquerda, revisito a derrota eleitoral de 31 de janeiro para, do balanço dessa contenda e do período anterior, elencar algumas propostas para uma estratégia da esquerda no próximo período.

Onde falhou a comunicação?

Imediatamente após a noite eleitoral de 31 de janeiro, esbocei uma «hipótese controversa e otimista perante a maioria absoluta» do PS. Aí, reconhecendo a razia eleitoral que atingiu a esquerda, assinalava um aspeto positivo. A direita fora derrotada e a dimensão e a história dessa derrota demonstravam a existência de uma maioria social que recusa a austeridade, o ultraliberalismo e o neofascismo de forma veemente. Assinalava assim que, para pensar a derrota da esquerda (e a sua política de ora avante), nos podíamos apoiar em dois elementos: o primeiro é que não há uma derrota social profunda; o segundo, que as razões para a hecatombe eleitoral radicam na esfera das relações político-partidárias, não nas profundezas sociais da luta de classes. Não houve uma derrota social profunda para a esquerda, mas sim político-eleitoral ― pelo que é possível recuperar no atual ciclo político.

O ponto nevrálgico dos diagnósticos elaborados tem sido o chumbo do Orçamento para 2022 pelo Bloco e PCP. Alguns condenam retroativamente essa decisão, com argumentos mais ou menos sérios e já obtiveram respostas pertinentes. Aproximo-me mais de quem, reivindicando a opção de chumbar o orçamento, assume que a esquerda não terá conseguido «comunicar» devidamente as suas motivações, sendo por isso penalizada. É essa perspetiva que procurarei enriquecer. Porque não foi possível comunicar devidamente algo que deveria ser cristalino ― a defesa do SNS e o combate à precariedade? O que significa, neste caso, «comunicar»? Como se relaciona isto com o balanço da Geringonça?

Penso que é nos anos recentes ― e não nas semanas, ou mesmo meses, que antecederam as eleições ― que podemos encontrar resposta a estas questões. Aliás, dentro da esquerda, todos os balanços têm feito este exercício. Porém o balanço da Geringonça tem sido feito de forma unilateral. Uns tecem um balanço positivo para justificar o chumbo do Orçamento; outros, partem do mesmo balanço para concluir o oposto. Há ainda, à direita ou entre comentadores das redes sociais, quem encontre na Geringonça o pecado original cujo castigo divino se abateu sobre a esquerda. Contudo, a questão é mais complexa. A proposta que faço é que a principal pecha do período da Geringonça é que uma opção tática válida ― a sustentação de um governo minoritário PS para travar a direita ― se reverteu, por omissão, numa orientação estratégica. O chumbo do OE 2022, na ausência de um projeto estratégico alternativo, foi entendido como um salto no vazio. Não foi possível comunicar qual era o caminho a seguir, porque de facto ele não era claro. Aqui, parece-me, residiram as dificuldades em comunicar a opção justa do chumbo orçamental.

O pensamento estratégico enferrujado

A Geringonça foi uma expressão particular da crise e da revolta social contra a solução austeritária da mesma. Foi a consequência eleitoral e parlamentar da luta de massas contra a direita e a austeridade. Essa importante vitória tática reverteu-se mais tarde em debilidade estratégica. Um dos problemas é que o nosso pensamento estratégico, à esquerda, estava enferrujado há décadas.

No período que mediou a queda do muro de Berlim e a grande crise capitalista de 2008, não houve à esquerda a necessidade de grande reflexão estratégica. Pelos piores motivos: os tempos eram de resistência e oposição. Marcar posição contra o situacionismo neoliberal, mantendo uma presença minoritária nas ruas e no parlamento era o horizonte do possível. Manter «partidos de protesto», usando as palavras do comentariado oficial, era o que restava à esquerda.

Mas a crise de 2008 e a revolta social que se lhe seguiu, sobretudo em países como Portugal, Grécia e Estado Espanhol, mudaram isso. A esquerda, assente na mobilização popular e no crescimento eleitoral, aproximou-se do poder, no Sul da Europa, mas não só ― pensemos em Corbyn e Sanders, noutras latitudes. Assim, a necessidade de uma estratégia que ultrapassasse uma posição de resistência tornou-se premente. Deixou de ser assunto abstrato de teóricos diletantes. Era uma necessidade prática para orientar a política quotidiana. E assumamos: depois de duas décadas acantonados, o pensamento estratégico estava, entre nós, destreinado. No momento do contra-ataque não tivemos um plano para a vitória.

O resultado desta confusão estratégica foi mais estrepitoso quanto mais foi fulgurante a ascensão da esquerda. A tragédia do Syriza, e o trauma resultante, foram exemplo disso. Numa versão diferente e diferida, Corbyn passou por um problema semelhante após tomar a liderança do Labour.

Na Península Ibérica, ainda que em versões diferentes, do crescimento da esquerda resultou um desafio idêntico. Na ausência de condições para tomar o poder, a esquerda não poderia assumir o governo, apenas influenciá-lo com grau mínimo de compromisso (mínimo no caso Português, pelo menos). Esta foi uma reação prudente (mas defensiva) face à experiência do Syriza e também uma consequência de o crescimento eleitoral da esquerda não ter sido, por cá, tão explosivo quanto na Grécia. No Estado Espanhol o esvaziamento da recente reforma laboral dá-nos pistas sobre os perigos desta orientação.

A nossa experiência com a Geringonça é congénere destas. Todas refletem uma nova situação no mundo após a crise de 2008 em que a mobilização popular e o crescimento das esquerdas dilatou as fronteiras do possível. Contudo, refletem também as debilidades estratégicas legadas do momento anterior, a do anunciado fim da história pós-queda do Muro de Berlim. Conclui-se que o crescimento social e eleitoral, por si só, não chega. E que uma sucessão de táticas bem-sucedidas não constroem uma estratégia vitoriosa. Pelo contrário, na ausência desta última, sucessos continuados revertem no seu oposto. O que surge na luta política como um problema de comunicação pode ser, na verdade, a omissão de uma orientação de médio-prazo, orientada para transformar sucessos parciais na disputa pelo poder. Assim, distinguir, desde logo no debate, a dimensão tática (imediata) da estratégia (orientada para a vitória) é determinante. Saber que a primeira se deve subordinar à segunda, mais ainda. Táticas vencedoras não fazem uma esquerda vitoriosa, já um estratégia anticapitalista acertada pode abrir essa possibilidade.

No novo ciclo de crise e lutas, há que fazer a reflexão estratégica necessária com profundidade, para além da política conjuntural. Porque novas marés montantes virão e, desta vez, temos a responsabilidade de lutar para vencer.

(Na segunda parte deste texto, a publicar amanhã, aprofundo o balanço do período da Geringonça, procurando, dele, extrair um contributo para o futuro).

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