A centralidade da luta antirracista na estratégia da esquerda

“O problema do racismo é um problema que massacra, mata e retira qualidade de vida às pessoas não-brancas mas é, sobretudo, um problema da branquitude pelo que estar comprometida e envolvida com a luta antirracista do ponto de vista de uma pessoa branca e europeia não pode ser na condição de “aliada”, deverá sempre ser na condição de quem compreende que a única saída coletiva é assumir a luta contra o racismo como uma luta de todas.”

Bárbara Góis, aqui.

“O papel tremendo desempenhado pelos negros na transformação da Civilização Ocidental do feudalismo ao capitalismo. É apenas deste ponto de vantagem que seremos capazes de apreciar (e prepararmo-nos) para o papel ainda maior que por necessidade terão na transição do capitalismo para o socialismo.” Gabriel Santos, aqui

Queremos começar por afirmar que, ao colocar a luta antirracista como um elemento central da nossa política, retiramos a possibilidade de escolher atalhos ou de optar por conciliar. A centralidade da luta contra o racismo obriga a construir uma força oposta ao status quo, uma força oposta ao ódio, à intolerância e à invisibilidade. Implica entender que o racismo não é um problema comportamental, uma atitude individual lamentável – ou natural – mas sim um elemento sistémico e basilar da sociedade capitalista. Implica destruir o mito do bom colonizador e as ideias do lusotropicalismo, que afetam enormemente a consciência das pessoas, analisar a história à luz do papel do império português no tráfico de pessoas para escravização mas também olhar hoje para o papel do estado português e instituições como agentes de exclusão social e de manutenção de desigualdades. 

A ascensão das lutas do movimento negro como motor de transformação social

Os últimos anos foram testemunho de inúmeras demonstrações de força do movimento negro e antirracista, que ocuparam a praça pública com manifestações, manifestos, demonstrações de solidariedade, fruto de anos de organização mas também do peso dos ataques racistas que quotidianamente ocorrem, sejam eles episódios de agressão, assassinatos como no caso de Bruno Candé, Luís Giovanni, Ihor Homeniuk, violência polícial como no caso de Cláudia Simões, na esquadra de Alfragide, no bairro da Jamaica, inúmeros outros episódios durante a pandemia, as mortes de jovens negros, ciganos e pobres nas prisões portuguesas. 

As ruas encheram-se vezes sem conta, muitas vozes se juntaram para expor o racismo quotidiano e sistémico, os ataques banalizados a figuras de destaque do movimento negro, para contestar o crescimento da extrema-direita. 

O reforço do movimento antirracista a que assistimos no nosso país e o protagonismo político crescente, nas ruas e nas instituições, de pessoas racializadas e do combate antirracista foi visível no parlamento com a eleição histórica de várias deputadas negras, em 2019. Tem o potencial de atacar as bases desta sociedade, pois é sobre as vidas negras, imigrantes que recai o trabalho de sustentar a sociedade, na estratificação do trabalho e das funções. Há uma linha de cor nas tarefas mais básicas, mais mal pagas e mais invisibilizadas – a pandemia escancarou essa ferida, deixou a olhos vistos quem não confinou, quem limpou, entregou a comida, manteve os supermercados abertos, cuidou dos hospitais e de outras estruturas essenciais para a sobrevivência. 

O avanço das reivindicações antirracistas e a centralidade dada às questões do movimento negro trazem progressos para todas, todos e todes. Ao longo da História sempre assim foi – quando as camadas mais oprimidas da sociedade se movimentam, se revoltam, erguem as suas vozes, toda a sociedade é obrigada a se movimentar, a progredir. Milhões de pessoas negras ergueram as suas mãos, levantaram-se e escreveram alguns dos mais gigantes e grandiosos capítulos da história da libertação da Humanidade – das lutas contra a escravatura às lutas de libertação nacional. Direitos para uns nunca significa menos direitos para todos. 

Contra o crescimento da extrema-direita a solidariedade ativa é essencial 

É desta falácia – de que não dá para todos – que a extrema-direita se alimenta mundialmente. Os neofascismos portugueses não diferem – a sua política de ódio contra pessoas negras, ciganas, imigrantes, mulheres, LGBT+s aprofunda as divisões sociais, alimentando o mito do Portugal branco, do imigrante subsídio-dependente, do negro bandido, da mulher destruídora da ordem natural da vida.

Não por acaso elegeram Mamadou Ba como alvo preferencial para ataques públicos, por ser uma as principais vozes contra o racismo sistémico, contra a violência policial e pela descolonização interna – por ser negro e por ser um militante antirracista, socialista e internacionalista. Outras figuras de destaque do movimento negro e social em Portugal foram sendo foco de discursos violentos, na tentativa de destruir referências, silenciar o ascenso e aprofundar a ideia de “nós” e “eles”, sempre reservada para as pessoas racializadas em Portugal. 

O combate à extrema-direita deve ter no seu centro uma política antirracista, anti-opressão. Destruir os mitos e expor as falácias, construir a solidariedade, a união, um programa interseccional que seja capaz de enfrentar o ódio é essencial.  

A importância de um programa em prática

Uma esquerda que queira realmente espelhar quem trabalha em Portugal tem de ser mais negra, mais cigana, mais imigrante. Tem que ter como prioridade um programa antirracista de combate; um programa que se proponha a desmantelar o racismo sistémico, componente essencial do sistema de dominação capitalista em Portugal e no mundo.

Um programa que proponha medidas concretas que partam das experiências de vida e de luta das pessoas racializadas e que coloquem em causa o conjunto do sistema de opressão racista e xenófoba. Esse é o caminho que precisamos trilhar em conjunto. 

Não há necessidade de inventar as soluções – o movimento negro, Roma e antirracista têm pautado as necessidades urgentes e também de fundo – das comunidades racializadas em Portugal. Precisamos priorizar esses componentes no nosso programa. 

A garantia da recolha de dados étnico-raciais; a promoção de políticas anti-segregacionistas (na habitação, cultura e educação); a revisão descolonizadora dos currículos escolares; o garante de uma lei da nacionalidade que consagre o direito de solo e a desburocratização de aquisição de nacionalidade;a garantia de acesso ao nome social à pessoas trans e nao binárias imigrantes, a instituição inequívoca do racismo como crime público; o combate à brutalidade policial e o fim da discriminação no acesso à justiça; a extinção de organizações políticas e partidárias que promovam o discurso de ódio.

A necessidade de priorizar a representatividade das mulheres, pessoas trans e nao binarias negras e imigrantes nos lugares de decisão como forma de combater a invisibilidade. É urgente garantir condições para vidas dignas. As mulheres, pessoas trans e nao binarias  negras, roma-ciganas, refugiadas e migrantes precisam que as leis lhe sirvam e Portugal precisa de leis mais igualitárias. Ouvir e entender que o padrão “branco” não serve mais, de forma a encontrar ferramentas concretas para remover os obstáculos colocados pelo racismo sistémico.

Portugal sempre foi racista, desde o momento em que concebeu o tráfico de pessoas africanas para serem escravizadas em territórios violentamente colonizados, até ao momento em que foi responsável pelo maior número de pessoas negras escravizadas. Foi racista quando colonizou. Portugal continua sendo um país racista com poucas políticas para garantir que não haja mais vítimas de crimes racistas pelas mãos de ninguém, continua a dar aval a ideia-fetiche de que só há portugueses brancos, ao impedir a descolonização dos manuais e da história do país e ao não atribuir nacionalidade para todas e todos de forma igual.

Nós, ativistas de esquerda, comprometidas com a mudança radical da sociedade, precisamos de construir uma política ativa, interventiva, solidária e unitária para combater as ideias mais reacionárias e violentas da sociedade, que exploram,que oprimem, assassinam e violentam, como sempre fizeram ao longo da história. Trata-se não de ocupar o lugar de quem sente na pele estas violências, mas sim de compreender que os diálogos e construções conjuntas começa necessariamente com uma postura auto-critica de uma esquerda agarrada a noções eurocêntricas e brancas  de ação militante e elaboração de políticas. É necessário romper com a ideia de que será a esquerda revolucionária a “dar voz” aos sectores racializados porque esses setores já tem voz. Parafraseando Amanda Palha, militante socialista e transfeminista, agora o momento é outro. É momento de olhar para os movimentos antirracista, de pessoas imigrantes e LGBTIa+ com o questionamento : “O que esses movimentos podem contribuir para as nossas elaborações teóricas e horizontes estratégicos”? 

As tarefas da esquerda revolucionária, progressista e socialista são várias, sendo uma delas entender que é momento de dar prioridade e centralidade a incorporação do combate direto contra um dos pilares da sociedade capitalista : o racismo. 

*imagem de “Olhares sobre o Racismo” de Bruno Cabral, Eddie Pipocas e Dércio Ferreira

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