A paridade da maioria absoluta

A tomada de posse do novo executivo do PS na semana passada puxou várias discussões para a praça pública – programa do novo governo, as principais metas, os comentários de Marcelo Rebelo de Sousa e também a questão da igualdade de género entre as novas figuras centrais do executivo. É o primeiro governo em Portugal com paridade entre ministros e ministras – 9 mulheres e 9 homens (contando com o primeiro ministro).  As secretarias de estado são menos igualitárias, com 12 mulheres num universo de 38 lugares. Se procurarmos entre as mulheres deste novo governo não encontramos mulheres negras, mulheres ciganas ou mulheres com deficiência, sintomático da invisibilização constante das mulheres que figuram a base das múltiplas pirâmides sociais. Aliás, esta eleição retirou um espaço conquistado na Assembleia da República em 2019 com a eleição de Joacine Katar Moreira, Beatriz Gomes Dias e Romualda Fernandes. Neste hemiciclo mantém-se apenas a deputada Romualda Fernandes e a participação das mulheres negras não é reforçada mas sim diminuida.  

Destaque para a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, que será efectivamente a número 2 no governo, responsável pela gestão do PRR; Outra nomeação referida é a de Helena Carreiras para ministra da Defesa (a primeira ministra da Defesa em Portugal!), que suscitou um grande debate com contornos sexistas sobre o papel das mulheres na tutela de órgãos maioritariamente masculinos, como é o caso das Forças Armadas, na guerra e em espaços “tradicionalmente masculinos”. Sabemos que esta discussão é ultrapassada, machista e que o género não impede o desempenho da função de ministra da Defesa, de qualquer função na verdade – aliás, Ursula von der Leyen foi ministra da Defesa da Alemanha e é hoje responsável pela gestão do conflito na Ucrânia no que toca às sanções europeias à Rússia. Outro assunto é o que os políticos e as políticas fazem enquanto ocupam os cargos.

Representatividade porquê, para quê e para quem? 

Há uma evolução evidente na representatividade – passámos de 5.7% mulheres eleitas para a Assembleia da República em 1976 para 36.8% em 2022 e de uma ministra em 79 para 9 ministras no presente governo. Existe igualmente uma lei da paridade em vigor, que estabelece um patamar mínimo de 40% de representatividade das listas concorrentes a eleições em Portugal – mas só para questões de género. Portugal segue a tendência mundial de maior paridade, mesmo em contexto de crescimento de forças reacionárias, neofascistas e retrógradas, mas é importante referir que a representatividade é muito limitada – vemos a eleição e nomeação sobretudo de mulheres brancas. Por isso importa perceber quem é eleita, como que programa e qual o seu papel durante o mandato.

Na constituição do novo governo, António Costa foi abordado pelas Mulheres Socialistas no sentido de garantir uma maior representação de mulheres no Governo, bem como a centralidade da igualdade em toda a orgânica. Contudo, acho que a paridade atual no governo deve pouco à moção das Mulheres Socialistas, embora o pedido seja de mencionar porque é também sintoma da evolução das demandas, e tem mais que ver com a evolução das lutas feministas internacional e nacionalmente. A participação das mulheres na política tem crescido imenso e parece combinar fenómenos – por baixo, a vitória das nossas lutas quotidianas (o exemplo da eleição de Joacine Katar Moreira, Beatriz Gomes Dias e Romualda Fernandes num momento de ascenso das lutas antirracistas e do movimento negro é testemunho desta movimentação) e  e no andar de cima uma tentativa de “neutralizar” as lutas através de gender washing por parte das classes dominantes e uma disputa de género dentro dessas mesmas classes, visível no feminismo liberal e no que as escritoras do Manifesto “Feminismo para os 99” falam, uma busca de paridade e partilha na exploração e dominação. 

Por isso, importa muito falar sobre que tipo de representatividade precisamos. Queremos as mulheres que representam a maioria das mulheres na sociedade. Sabemos que ter mulheres na política e nos cargos decisivos é imprescindível e coloca na ordem do dia temas antes invisíveis mas não nos iludimos –  a eleição de mulheres não significa automaticamente a defesa dos direitos da maioria das mulheres e novas conquistas. 

A eleição de mulheres que defendem um programa feminista, que se levantam contra as injustiças machistas, racistas, transfóbicas ou outras representam um grande passo e um megafone das lutas de rua, das greves, das mobilizações. Significa traduzir no parlamento, nas assembleias, nas câmaras as reivindicações quotidianas. Estas representantes são incómodas, vão contra o status quo e por isso muitas vezes sofrem violência no desempenho dos seus cargos – vemos inúmeros exemplos no Brasil, com o exponte máximo do assassinato da Marielle Franco mas mais recentemente nas ameaças às mandatas populares de Benny Briolly e Taliria Petrone, nos EUA com os ataques a Alexandria Ocasio-Cortez, os ataques a Joacine Katar Moreira, os comentários sobre o batom vermelho da Marisa Matias aqui em Portugal. Calar estas mulheres, intimidá-las e reforçar a ideia que nos espaços políticos não cabemos todos/as/es tornou-se agenda política (sobretudo da extrema-direita) a cada vitória nossa. 

Quando discutimos a paridade do governo ou a eleição de mulheres para lugares de destaque, reconheço em primeiro lugar que representa um avanço mas não me satisfaz, como não satisfaz a milhares de mulheres. A tarefa é ir além da mera representatividade feminina e construir uma frente de mulheres de esquerda que se apresente com uma verdadeira resistência feminista, ampliando as nossas vozes e lutando pelos nossos direitos a cada passo. O caminho é longo e faz-se em muitas frentes. As nossas lutas erguem-se e consolidam-se nas ruas, os avanços que surgem do Parlamento são fruto da nossa pressão aqui fora. Por isso, a eleição e nomeação de quem nos escuta é essencial. A mim importa-me eleger e ser representada pela Beatriz Gomes Dias, pela Catarina Martins, pela Taliria Petrone, pela Alexandria Ocasio Cortez e por muitas outras companheiras que carregam a nossa resistência nas suas propostas.

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