Durante décadas, a coisa era fácil. Era tempo do vira o disco e toca o mesmo: ora governava o centro-esquerda, ora o centro-direita, que se iam alternando no poder, na medida em que os eleitores iam alternando, nas urnas, o castigo. Ou, nas sarcásticas palavras do saudoso Zé Mário: «Votas à esquerda moderada nas sindicais /Votas no centro moderado nas deputais / E votas na direita moderada nas presidenciais». Mas não há mal que dure para sempre… e, chegados à crise de 2008 e aos duros anos da Troika ― «não há truque que não lucre ao FMI» ―, o disco riscado ― PAF! ― saiu dos eixos. Então, castigando os castigadores, em 2015, o povo correu com a direita coligada, sem com isso dar a vitória ao PS ― carregando à esquerda, reforçando a quem se opôs à famigerada austeridade. Desse desequilíbrio sensato nasceu o que se veio a chamar ― primeiro em jeito de achincalho, depois com gosto e, já para o fim, com desgosto ― a Geringonça.
As palavras rolaram: um novo ciclo, um virar da página, um diabo na dobra da esquina… mas vingou a Geringonça, mais sustentada pela reversão de alguns dos cortes (d)a direito(a) que pela dança nasalada dos seus ditongos entorpecedores. Mais duradoura do que se esperava, com padrinhos matreiros e afilhados desiludidos, a Geringonça lá terminou ― dizem uns que já nos idos de 2019, nem vírus havia; outros que foi mais recentemente em 2021. Como uma passarola desinflada, a caranguejola que juntou a esquerda e o centro-esquerda terminou como sempre acontece com estas equações: de tão mínimo que era, foi-se o denominador e nada sobrou em comum. E, nisto, Costa roeu a corda, Marcelo puxou o tapete e, aos desencontrões, precipitaram eleições.
O berbicacho e a salganhada
Dado este contexto, em que a Geringonça parece definitivamente enterrada e o gira discos que toca o mesmo, desde de que deu o PAF, pelo menos, avariado está, não se fala de outra coisa: que Governo vem aí? Costa não pede a maioria absoluta, porque não só não a vai ter como mais longe dela ficará cada vez que dela fale; tampouco quer nova Geringonça, dado tê-la desengonçado se não duas, pelo menos, uma vez. Pode dar a mão ao PSD, ao PAN quem sabe ou, encostando à parede os antigos parceiros, tentar chantagear deles um último apoio. Do lado de lá do espelho, a rir ficou Rio, que se inclina também para Costa ― aceitando apoiá-lo, caso este governe em minoria, e por ele ser apoiado, caso o improvável simétrico suceda. Pelo meio, o PAN estende a mão a ambos ― à vez ou ao mesmo tempo (quem sabe?) ―, aceitando integrar um governo Costa ou Rio, tanto faz. Na direita da direita, CDS desaparece e a Iniciativa Liberal faz jus ao nome: prontos, ambos, a apoiar Rio, caso este desague no poder. Já o Chega grita e esbraceja, mas já ensaiou nos Açores o que está disposto a fazer em S. Bento: sustentar um governo PSD ao lado das outras direitas todas (mais coice menos coice) ― tão próximas que são elas nos hábitos e nas origens.
Qual desentendido da matéria, Marcelo, o causador da confusão, já veio, como um pai que batiza o filho, nomeá-la: há aqui risco de berbicacho, professou o professor. Ou seja, o que o Presidente teme (e o que ele causou) é uma situação em que não se avistam soluções de governo estáveis, havendo o risco de um ciclo curto ― ou de ciclo nenhum ―, lançando o país em sucessivas eleições. Parece um croupier que baralha e volta a dar, até que saia boa mão ao jogador que lhe é predileto.
Ao berbicacho de Marcelo, Costa e Rio contrapõem a salganhada. Uma coisa em forma de assim ― que não é boi nem é peixe, não é cão nem vaca e que, se não há gato, caça rato por lebre. Não é bloco central, mas cheira a tal; não é de direita nem de esquerda, pelo que deve ser da primeira. É a salganhada.
É graças a ela (à salganhada!) que a um eleitor que vote Costa, contra o regresso da direita, pode sair-lhe Rio na rifa; e um que vote Rio, fartinho de Costa, pode ver o seu voto acabar no bolso daquele. Um que vote PAN, porque gosta dos seus princípios, pode ter um mau fim, na lapela do PS ― com ou sem D. Um que vote Iniciativa Liberal, porque acha que Rio não é de direita, pode acabar a dar-lhe apoio, como já fez nos Açores. E um que vote Chega porque é contra estes todos, pode acabar ao lado de muitos deles (CDS, IL, PSD) a dar apoio a Rio que, por sua vez, não exclui a possibilidade de sustentar Costa…
A salganhada parece ser então o menu que quase todos propõem dia 30. Pode servir-se como o bacalhau: com todos. Pode ser uma salada ou uma tábua de degustação ― sabe-se apenas que os sabores combinam mal (mas combinam!) e que a indigestão é certa. Tudo se mistura (resta saber por que ordem) e parece haver só uma regra: deixar a esquerda nas bordas do prato, pois parece que, aos degustadores mais gourmet, a Geringonça, mesmo com pouco picante, causa grande azia…
Mas há alternativas: um murro na mesa para virar o tabuleiro de um jogo viciado. Quem trabalha têm em quem votar com confiança.
O Bloco de Esquerda vai a votos. E com ele, leva a defesa do SNS, a luta pela Justiça Climática, e o projeto cuidar de quem cuida, responsabilizando o estado pelo trabalho de cuidados. Traça na destroikização das leis laborais as suas linhas vermelhas. Sem truques nem embustes.
A solução é à esquerda: votar Bloco. Sem berbicachos, cambalachos nem salganhadas.
Ilustração: A Parada Amorosa, de Francis Picabia, 1917