Se forem ao Caniçal, na ilha da Madeira, visitem o Museu da Baleia. Vencedor de inúmeros prémios, este museu fala-nos dos nossos magníficos primos cetáceos que habitam nas águas madeirenses; é, simultaneamente, testemunho e homenagem da gesta baleeira de centenas de homens e mulheres que alimentaram a pesca à baleia, por décadas, naquelas águas azuis. Desta história contraditória que opôs, na luta pela sobrevivência, baleeiros e cetáceos, ambos manietados pela sede do lucro capitalista, podemos retirar algumas lições para superar a presente catástrofe climática.
A pesca à baleia na Madeira iniciou-se em 1940 e em 1944 foi fundada a Empresa Baleeira do Arquipélago da Madeira, empresa privada a quem o Estado Novo concedeu o monopólio da captura e transformação das baleias. Inicialmente distribuída por vários pontos do arquipélago, a indústria concentrou-se progressivamente na vila do Caniçal. Pesca, transformação e grande parte da vigia (destinada à deteção dos cetáceos) empregaram centenas de pessoas. Isolada e pobre, a vila, tradicionalmente piscatória, foi alimentada pela indústria baleeira, de quem se tornou refém. Escusado será dizer que, para os baleeiros e as famílias, o sustento era parco, o trabalho árduo e os riscos muitos: mais do que algozes dos seus primos cetáceos, eram, como eles, vítimas de uma indústria que se dedicava a sugar a vida de homens e de baleias.
Nos anos 70, a pressão dos movimentos ambientalistas levou a que o comércio de produtos extraídos das baleias fosse severamente restringido. Progressivamente, a caça à baleia foi sendo proibida. Sob esse pretexto, em 1981, chegou-se ao fim «voluntário» da indústria baleeira na Madeira. Mas por trás do discurso da conservação das espécies a realidade era outra: as baleias escasseavam, haviam sido caçadas à exaustão e o negócio tornara-se inviável. Assim, o Capital seguiu viagem para outros negócios, legando à vila e ao mar do Caniçal o que hoje se chamam as «externalidades» da indústria: desemprego, pobreza e um ecossistema exaurido. Tal como a indústria dos combustíveis fósseis hoje, a pesca da baleia viu-se duplamente pressionada. As justas reivindicações ecológicas denunciavam a sua natureza predatória. Mas, sobretudo, ela esbarrou numa muralha intransponível, inegociável e incorruptível: a finitude dos recursos planetários, que não cede perante a voracidade infinita do capitalismo. O argumento moral e político dos ecologistas até podia ser refutado, mas o do planeta não. Se isso era verdade perante a extinção das baleias, é-o muito mais no atual momento, perante o abismo do colapso climático. Porque desta vez, além da extinção de milhares de outras espécies, é a da nossa civilização que está no horizonte ― se não, mesmo, o fim da espécie humana.
Além do evidente caráter ecocida da pesca baleeira, era sabido, com décadas de avanço, que ela era inviável no médio-prazo. Mas nem o governo, nem os donos da indústria preparam um encerramento faseado que precavesse a empregabilidade futura dos baleeiros e das suas famílias. Quem sabe alguns, ignorando o deserto de cetáceos que se havia tornado o mar, terão respondido: «ah, mas não se caça baleias na Madeira, são caçadas no Japão», como argumento para evitar o inevitável. Talvez tenha havido, não sei, sindicatos a exigir uma transição justa para a vila do Caniçal não ser abandonada à sua sorte pelo desmonte da indústria ― mas, se os houve, não vingaram.
O desafio da transição justa para longe do capitalismo fóssil é bem maior que o desta história. Não se trata apenas de uma indústria, mas do cerne da infraestrutura industrial capitalista global, toda ela dependente do petróleo, carvão e gás. Mas a barreira planetária contra a qual ela se choca é bem mais intransponível. Também, hoje, há quem, como o nosso Governo, «externalize» o problema para a população ou para outros pontos do globo, disfarçando de preocupação ambiental a desfaçatez. Também, hoje, há quem, a pretexto da defesa dos postos de trabalho, empurre os trabalhadores para encerramentos descontrolados a breve trecho. A verdade é que refinarias, gasodutos, poços petrolíferos e minas de carvão irão encerrar: ou por atos de desespero, dos governos ou das populações, quando já for tarde de mais; ou pela ação destrutiva dos próprios fenómenos climáticos extremos. Podem também ser encerradas através de uma transição justa que tenha os trabalhadores como protagonistas. Ainda há tempo para o fazer e as populações e comunidades desejam-no. Os trabalhadores dessas indústrias, que não são tolos, sabem que esse é o caminho. Façamo-lo juntos. Caso contrário, seremos nós os fósseis, sem museu futuro que nos acolha.