Que propostas para a segurança pública?

Os debates autárquicos recentes, sobretudo aqueles feitos sobre as periferias da cidade de Lisboa ou onde existem comunidades racializadas, têm focado propostas para a segurança pública, salientando respostas como mais policiamento, a criação de mega esquadras, a adopção ou alargamento da videovigilância. É uma discussão que atravessa todos os quadrantes políticos mas que, e não por acaso, tem especial destaque nas candidaturas do Chega ou da Suzana Garcia na Amadora. Em nome da “segurança pública” e do combate à criminalidade dizem-nos que precisamos de mais polícia e mais recursos para esta.

Gostaríamos de dar um contributo para esta discussão, com base nas propostas que surgem dos movimentos antirracistas e que, no caso dos EUA, estão a ser aplicadas em várias cidades, em torno do desinvestimento na polícia (Defund the Police). Trata-se de re-desenhar o que significa a segurança pública e escolher entre políticas de policiamento e uma ampla gama de alternativas. Aconselhamos vivamente a leitura do artigo sobre o debate em Portugal escrito por Ana Rita Alves, Cristina Roldão e Pedro Varela, podem consultar aqui.

Mais polícia não significa menos violência ou criminalidade

Os estudos feitos não mostram de forma conclusiva que a polícia diminui os homicídios, a violência ou o crime. Não há dados que apontem que aumentar o número ou os recursos da polícia é uma forma mais eficaz de prevenir, intervir ou curar a violência do que outras abordagens (atender às necessidades materiais das pessoas, respostas ao nível da comunidade, mais professores etc). Prevenir, interromper ou solucionar crimes nunca foi a verdadeira função destas forças – a sua origem está enraizada na escravatura, no colonialismo e na manutenção das desigualdades sociais, baseado na repressão dos setores mais pobres da sociedade. As forças de segurança foram e são concebidas pelo Estado para utilizar a violência para manter desigualdades e privilégios.. 

Muitas vezes o debate fica encalhado na discussão das “maçãs podres” e do “preconceito” de alguns agentes. Este ponto de vista diz que não existe um problema com a polícia, com a sua função de exclusão e repressão social como se a violência policial recorrente fosse resultado de problemas individuais e não do reflexo do racismo estrutural e da criminalização da pobreza. Sabemos que os casos de brutalidade não são incidentes isolados e que  o discurso público e político que normaliza o ataque a migrantes, refugiados, pessoas racializadas, o ordenamento territorial com existência de Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS) e o investimento em material de guerra e recursos humanos servem para aprofundar a segregação e o tratamento diferenciado de alguns setores, nomeadamente negras/os, ciganos/as e imigrantes. Não por acaso, tem havido denúncias crescentes sobre a infiltração da extrema-direita nas forças de segurança, pela voz do polícia ex-dirigente sindical Manuel Morais, pelos ativistas que atuam no terreno, jornalistas e investigadores – a radicalização está em curso.

Policiar para quem?

O mito de que a policia trata de igual forma todas e todos na sociedade é exatamente isso – um mito. As forças de segurança atuam de forma diferente conforme o território e as pessoas em causa, na verdade não protegem todas e todos de igual forma. 

A atuação diferenciada baseada no racismo estrutural e preconceitos de que existem comunidades naturalmente perigosas e criminosas contribui para a criação de mais problemas e não para a criação de um ambiente seguro. Existem inúmeros exemplos em Portugal, mas podemos basear-nos sobre episódios ocorridos durante a pandemia: nos bairros da periferia de Lisboa os ajuntamentos eram dispersos com cargas policiais, tiros indiscriminados para o ar, detenções aleatórias e violentas; nas festas privadas em Cascais ou em zonas mais ricas e de maioria branca, como no centro da cidade de Lisboa, a polícia distribuiu avisos verbais. A forma como a polícia atuou no Bairro da Jamaica encerrando estabelecimentos à força depois de alguns casos positivos de COVID mas que nada fez sobre os surtos em fábricas ou departamentos de logística da área da grande Lisboa. A atuação da polícia nos despejos das famílias do Catujal em plena pandemia. As tentativas de cerco sanitário de determinadas comunidades, apoiadas na violência policial. 

Se o policiamento atua consoante perfil racial e económico, será que protege? Quem é que a polícia protege e do quê?  

Desinvestir nas forças de segurança para investir no bem estar de todas e todos

Segundo o Global Peace Index, Portugal está em terceiro lugar no ranking dos países mais pacíficos do mundo, mas ainda assim, no Orçamento de Estado de 2020 a GNR teve direito a 847,6 milhões de euros, para a PSP foram 731,8 milhões de euros e o SEF recebeu 117,8 milhões de euros. Portugal, um dos países mais desiguais da UE, é chocantemente um dos países com maior percentagem de polícias. O investimento nas forças de segurança é desmesurado face à realidade e não resolve os problemas no terreno, contribuindo sim para o aumento do estigma, da segregação e do medo. 

É necessário partir do entendimento de que os problemas são estruturais e equacionar que uma das formas mais eficazes de resolver isto é tirando poder e financiamento à polícia, realocando essas verbas para programas de apoio social, investindo nas comunidades locais e proporcionando habitação, programas de saúde mental, acesso a alimentos e outros programas de utilidade pública. O poder local tem um papel fundamental aqui, pela proximidade e pela possibilidade de programas a nível de autarquia e município, embora o estado central tenha um papel determinante nos orçamentos nacionais. O exemplo da Amadora é notório, com um  sistema de videovigilância que entrou em funcionamento em 11 de maio de 2017  e que representou um investimento municipal de um milhão de euros, acrescido de cerca de 900 mil euros na rede de fibra ótica, dinheiro esse que não foi aplicado em habitação acessível, em programas de acção social, saúde pública ou atividades para a juventude.

Precisamos de medidas baseadas na comunidade e no cuidado

Desinvestir nas forças de segurança e investir em políticas públicas é essencial para atacar as desigualdades estruturais existentes na sociedade. Combater de frente os preconceitos racistas, xenófobos, machistas etc. exige da esquerda, em todos os momentos, pensar nas alternativas que melhorem efetivamente a vida de todas e todos, partindo das necessidades dos que se encontram numa situação de desvantagem. Por isso, as questões de bem estar e segurança pública têm tudo a ver com direito à vida e à cidade, acesso à habitação digna, educação, saúde, formação e programas locais de apoio e muito pouco a ver com polícia ou câmaras de vigilância. Não se trata de ter polícia mais amigável e acessível, de levar a cabo policiamento de proximidade ou maior representatividade nas forças, mas sim de capacitar as comunidades para trabalhar o bem estar e a segurança a nível local, reforçando os laços comunitários de cuidado mútuo.

1 – Desinvestir e desarmar de imediato. Desarmamento das forças de segurança,com a redução de armas e meios repressivos, proibição de técnicas de intervenção e detenção violentas e desinvestimento para liberar verbas; Fim das Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS) que permitem a arbitrariedade violenta da polícia.

2 – Investimento em programas públicos quer ao nível da habitação, cultura, saúde, transportes e educação nos territórios marginalizados sujeitos a um permanente estado de exceção, combatendo as desigualdades com direitos. 

Habitação: criação de habitação verdadeiramente acessível, conforme as carências locais e em entraves burocráticos, de acordo com as necessidades das famílias e com quotas específicas para combater a segregação social e territorial; aumentar a prevalência de áreas verdes dos bairro, melhorar a qualidade dos edifícios e moradias na vizinhança e criar espaços públicos com ampla iluminação adequada para o tráfego de pedestres

Educação: combate à segregação escolar e percursos académicos profissionalizantes, com mecanismos de apoio e equipas multidisciplinares nos agrupamentos, reforço de psicólogos, assistentes sociais e mediadores culturais, sobretudo nas escolas localizadas em Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP); a formação e contratação de mediadoras e mediadores escolares oriundos das classes racializadas mais representadas localmente

Saúde: direito à saúde e alimentação; desenvolvimento de programas de consumo assistido, em articulação com o SNS pois a prevenção da violência deve incluir um enfoque na descriminalização e no tratamento

Transportes: é essencial garantir o acesso aos transportes com horários regulares, que sejam compatíveis com os horários de trabalho e que cubram o território; é necessário garantir a sua gratuidade para que todas e todos possam circular livremente

Emprego: trabalhar a nível local para erradicar o stress económico das pessoas, através, por exemplo da exigência da inclusão de cláusulas anti-precariedade em todos os cadernos de encargos executados pelas autarquias e de quotas municipais de emprego para pessoas em situação de desigualdade sistémica para combater a sub-representação profissões qualificadas e a sobre representação em profissões menos valorizadas socialmente.

Cultura: Apoiar o movimento associativo local e promover atividades culturais diversas e representativas.

Propostas trabalhadas a partir do programa do Bloco de Esquerda para as eleições autárquicas, podem consultar o documento aqui.

O debate sobre segurança pública está intrinsecamente ligado à luta contra o racismo e a xenofobia. Policiar, reprimir e agredir não resolve os problemas sociais nem cria uma sociedade mais justa e sustentável. Nas eleições autárquicas temos a possibilidade de, através de políticas de proximidade, contribuir para uma cidade para todas e todos, com direitos e igualdade.

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