Nos últimos anos temos assistido a uma escalada do discurso anticorrupção a nível internacional, nomeadamente no Brasil e, como quase sempre com uma ligeira demora, também em Portugal. E, quer num país quer noutro, este discurso tem sido veiculado quase exclusivamente pela extrema direita, mas também abordado de forma mais pontual, por alguma esquerda que pretende dar resposta a uma preocupação que cresce em amplos setores da sociedade.
Remetendo-me quase exclusivamente a casos do Brasil e de Portugal, tentarei demonstrar o engodo falacioso que representa uma argumentação central nesse sentido, mas também porque os setores da esquerda em que nos situamos não deverão cair nessa tentação de disputar as massas através duma avaliação extremamente recuada dum problema que realmente existe, mas que tem a sua origem num problema ainda maior: o capitalismo na sua fase imperialista.
Em primeiro lugar é obrigatório referir que este sentimento tem crescido a par do surgimento de grandes investigações que têm levado esses casos a tribunal: Mensalão, Lava-jato, Rachadinha no Brasil e Operação Marquês, Caso dos Submarinos e os inúmeros casos envolvendo os principais clubes de futebol, em Portugal. E, ainda que considere que a corrupção não tem vindo a diminuir por causa destas investigações e processos, é um facto que os mesmos são uma novidade que se poderia considerar uma melhoria qualitativa.
Porém, ainda que agora seja facilmente percetível a impunidade absoluta de que os detentores de cargos públicos, bem como os grandes capitalistas, gozavam no passado, nomeadamente nos tempos da ditadura nos dois países, para muitos setores da população a comparação é feita pelo número de casos que antes chegavam a tribunal em comparação com os muito mais que agora chegam. Casos em Portugal como o Ballet Rose1, não na sua génese, que envolvia prostituição e pedofilia, mas no seu abafamento, ou casos como o da Agropecuária Capemi2 no Brasil são paradigmáticos e demonstram como a lei não se aplicava a todos. Aliás, no Brasil, a Comissão Geral de Investigações, criada especificamente para supostamente dar combate à corrupção em 1965, um ano após o golpe que deu início da ditadura militar, “produziu 1.153 processos. Desses, mais de mil foram arquivados. Das 58 propostas de confisco, 41 foram alvo de decreto presidencial.”3
Ou seja, com isto quero resumidamente dizer que, em ambos os países, o problema se tornou generalizadamente mais reconhecido exatamente porque finalmente começou a ser combatido nos tribunais, ainda que de forma ineficaz como tentarei demonstrar mais adiante. E também por esta razão não é surpresa que, aqueles que mais defendam esta luta anticorrupção, sejam saudosistas dos regimes em que estes crimes eram imediatamente abafados na raiz para não chegarem ao conhecimento do grande público. Assim, obviamente que é mais fácil usar a retórica de que “antes é que era bom”, tão presente nos discursos bafientos dos partidos de extrema direita de Portugal e Brasil.
Por outro lado é normalmente abarcado pelo conceito de “corrupção” uma infinidade de crimes económicos que vão desde o tráfego de influências, abuso de poder, lavagem de dinheiro, evasão fiscal, etc. Como diz Ana Bondoso “a corrupção pode ser entendida como um desvio da conduta dos deveres formais de um cargo público exercido na função pública, para proveito próprio ou em detrimento do interesse público.”4
Isto é algo que normalmente prejudica o debate, pois não permite que, com a preocupação legítima, se crie uma discussão pública que permita avançar no conhecimento generalizado dos crimes que podem (e irão) ser cometidos pelos detentores de poder político e do grande capital e, com isso, no conhecimento generalizado de como funciona e como está podre o sistema capitalista no âmbito de uma democracia burguesa ou, como é eufemisticamente denominada, representativa ou parlamentar.
Ao mesmo tempo, havendo uma infinidade de crimes, haverá também uma infinidade de leis e de limites à aplicação das mesmas em termos de alcance, prazos de prescrição, etc. Assim, o cumprimento do que é pretendido no espírito da lei torna-se muito difícil, se não impossível. Não é por acaso que dificilmente se encontram condenações efetivas e que as que acontecem violem, para um número considerável de juristas e intérpretes da lei, inúmeros requisitos e trâmites legais. Isto provoca dois tipos de sentimentos junto da população, que favorecem os populismos baseados em análises rasas:
– Por um lado, o cidadão fica com a sensação que qualquer decisão tem sempre a influência do poder político, representando uma clara violação do princípio da separação de poderes. O exemplo maior desta última situação é, claramente, a condenação de Lula, num processo golpista com a única intenção de o afastar da luta pelas Presidenciais de 2018. Esta decisão, como é sabido, foi revertida judicialmente há uns meses, bem como foram expostas as inúmeras irregularidades cometidas nesse mesmo processo, nomeadamente por parte do inqualificável juiz Sérgio Moro que, entretanto, até tinha integrado o governo daquele que, por meios judiciais, tinha colocado no leme do poder político (!).
– Por outro lado, perante a situação normal que ocorre no sistema português, ou seja, do poder legislativo estar nas mãos do mesmo partido que detém o poder executivo (a nível nacional), é facilmente dedutível que as leis possam ser feitas à medida para que realmente não sejam eficazes. Leis que ficam no papel e que são muito bonitas, mas que não são aplicáveis. A somar a esta promiscuidade mais que potencial, convivemos com o facto de os juízes do Tribunal Constitucional serem quase todos nomeados pelos 2 principais partidos, mais uma vez violando claramente, a meu ver, a regra da separação de poderes.
Por todas estas razões o comum cidadão começa a não encontrar na democracia burguesa ferramentas capazes de travar aquilo que considera o “pior de todos os males” e pai de todos os outros. E, perante os discursos populistas e antidemocráticos, a esquerda, que se encontra numa situação defensiva, vê-se a braços com o difícil e penoso papel de defender a democracia e justiças burguesas, pois sabe que o que é secretamente pretendido por aqueles que proferem aqueles discursos é muito pior. Facilmente a esquerda fica, assim, aos olhos da população, colada ao regime vigente, ainda que nunca tenha governado, e mesmo que reiteradamente apresente críticas e propostas radicais que questionam, aqui e ali, as bases fundamentais que suportam o sistema capitalista.
E é este sistema, o capitalista na sua fase imperialista, que é intrinsecamente corrupto. E se o é na promoção da chamada corrupção ilegal, ainda pior o é naquilo que chamo de corrupção normalizada e/ou legal, embarcando no conceito amplo referido em cima.
Tomemos como exemplo o caso dos submarinos, que envolveu Paulo Portas. Para começar, sem me alongar em considerações legais, o nosso sistema judicial permitiu que este se safasse a qualquer condenação, ao contrário do que sucedeu do lado de quem corrompeu, visto que na Alemanha houve condenações relativamente ao mesmo caso. Mas não é neste particular que me quero deter. O que quero frisar neste caso é o debate que se gerou e onde foi centrado. Como sabemos, todo o debate acerca deste caso, salvo raras e honrosas exceções, foi dirigido à possibilidade de Paulo Portas ou alguém que estaria sob a sua alçada, visto ser o Ministro da Defesa na altura, ter sido corrompido para que se optasse pelos submarinos da Ferrostaal, uma empresa alemã. No entanto, para mim e para quem questiona este sistema capitalista, o problema maior estará a montante.
Assim, o problema maior que deveria ter centrado pelo menos grande parte do debate seria: qual a necessidade de Portugal comprar submarinos?
A necessidade, do ponto de vista do direito internacional, advém do compromisso, assumido perante a Nato e UE, de monitorização da vasta extensão das águas territoriais portuguesas para fazer face a uma ameaça ficticiamente alimentada que permite aos países centrais do imperialismo continuarem a justificar, perante a sua população, ações genocidas e desastrosas, como as invasões do Iraque e Afeganistão. Assim, para os países periféricos, fica o ónus de proteger os países centrais, os verdadeiros alvos dessas pseudoameaças ou mesmo ameaças reais, ainda que totalmente residuais e limitadas a grupos extremistas (sendo altamente empoladas a ponto de parecerem muito maiores e contra todos nós). E quem fala de ameaças terroristas poderá falar também das crises migratórias de refugiados, económicos, de guerra ou, mais recentemente, climáticos, que pesaram maioritariamente sobre países como a Grécia e Sul de Itália, no caso europeu, quando os destinos desejados pelos migrantes eram (e são) os países centrais. Ou até da interminável guerra às drogas, sendo que Portugal é responsabilizado por ser uma “porta de entrada”. Indo mais longe, devemos falar também na imposição, por parte dos EUA, que obrigasse os governos da Colômbia nos anos 80 e 90 do século passado a travar uma guerra aos cartéis de Cali e Medellín, pois o tráfego estava a criar uma saída imensa de capitais americanos. Ou seja, nem era por causa duma real preocupação relativamente à saúde pública. Era mesmo, mais uma vez, uma questão de dinheiro.
E o que ganham os países periféricos com essas responsabilidades? Nada ou praticamente nada, muito antes pelo contrário!
Voltando ao exemplo português, apenas “ganhámos” umas toneladas de ferro moldadas em forma de armas de guerra, cada uma custando cerca de €1.000.000.000 e que, cuja manutenção, estará sempre a cargo de empresas, também elas, normalmente oriundas de países centrais. Logo, esta e situações semelhantes como as PPP, por exemplo, drenam completamente o orçamento de estado, financiado pelos nossos impostos, em prol de uma elite e, claro, em detrimento da aplicação dos mesmos fundos em políticas que realmente poderiam aumentar o bem-estar geral da população ou fomentar a igualdade de oportunidades para pessoas de grupos oprimidos, a título de exemplo. Mas, aos olhos da justiça deste sistema podre e obsoleto, estes atentados contras as populações não são crime.
Ademais, mesmo que não tivesse ocorrido em determinado momento qualquer tipo de crime económico, de que países seriam as empresas que realmente poderiam fornecer submarinos a Portugal? E quantas empresas no Mundo existirão que o possam fazer? Facilmente inferimos que apenas países centrais detêm esse tipo de indústria militar pesada. Também chegamos à conclusão que, sendo as empresas que vendem este tipo de equipamentos em número reduzido, facilmente, antes de qualquer tipo de corrupção ilegal, estas empresas já se puderam sentar à mesa e decidir a margem de preços, altamente inflacionada, a que poderão vender os seus equipamentos de destruição e genocídio. Claro que isto, sendo sério, também é ilegal e chama-se cartel, no entanto não sejamos ingénuos… Todos sabemos que é impossível impedir ou controlar reuniões deste tipo em que são alinhavadas estratégias de definição de preços e distribuição de territórios e mercados, tal como Portugal e Espanha fizeram há séculos no famoso Tratado de Tordesilhas.
Por fim, mais um efeito pernicioso daqui decorre e recai quase exclusivamente sobre os países periféricos: Perante um esquema de corrupção como o descrito, quem realmente fica pior na fotografia é, quase invariavelmente, o corrompido, sendo que o corruptor passa quase incólume. Daí a ideia generalizada de que os países periféricos são corruptos e que os países centrais controlam muito melhor esse problema. Claro que são também os países periféricos que mais prejudicam a sua população nestes esquemas, através do desvio de fundos orçamentais, tal como está descrito na definição percetível de corrupção, enunciada em cima. Já os países dominantes apenas estão a usar mais uma das ferramentas à sua disposição para se perpetuarem no topo da pirâmide do imperialismo. No entanto, não deixa de ser curioso como este fenómeno iliba, mais uma vez, quem determina e decide tudo.

Por todas estas razões considero que uma luta anticorrupção nunca poderá ser o centro dum programa verdadeiramente de esquerda. Ainda assim, obviamente, deveremos fazer propostas que a atenuem e lutar para que as mesmas sejam eficazes, dentro das limitações descritas. Felizmente encontramos, nas propostas do Bloco de Esquerda para estas autárquicas5, algumas que se focam nestes objetivos a nível local como sejam a promoção da democracia participativa e a publicidade dos documentos oficiais como regra geral e não como regra excecional. Estas duas medidas, ainda que aparentemente simples, causariam uma sensação de fiscalização de todos os processos autárquicos a um nível que atualmente não existe. E, como sabemos, fora dos centros urbanos de Lisboa e Porto, apenas a fiscalização cidadã poderá ajudar as autoridades a localizar os principais focos de crime económico.
3 https://super.abril.com.br/historia/mito-na-epoca-da-ditadura-militar-nao-tinha-corrupcao/
4 https://obegef.pt/wordpress/wp-content/uploads/2015/05/e008.pdf (página 22)
5 https://www.bloco.org/media/ManifestoConferenciaAutarquicaOnline2021.pdf (páginas 24 e 25)