Tentei, confesso, ir procurar qualquer título que parecesse inteligente ou qualquer outra coisa, mas creio que não há nada mais revolucionário do que a verdade e oferecer algo que bata de frente com o que os média têm veiculado sobre Sara é uma obrigação coletiva.
A resposta do estado português a este caso, bem como a resposta da sociedade e dos média, assim como todo o silêncio dos círculos feministas, são paradigmáticos e a sua análise é necessária para obtermos respostas e reflexões que nos permitam fazer frente ao que nos põe como obstáculos as várias contradições da sociedade na qual vivemos. Questões como: a quem serve a justiça? Para quem são feitas as leis?
Grosso modo, e sem poupar a sensibilidade de ninguém, Sara é uma mulher emigrante, negra e em situação de rua que manteve uma gravidez indesejada sem nenhum tipo de apoio ou acompanhamento médico.Uma gravidez que ninguém se preocupou em saber ao certo se foi fruto de relações consentidas, de estupro ou consequência de ter que se submeter à prostituição. A Sara pariu sozinha, aguentou contrações sem epidural e um parto cheio de dores num local sujo e sem a menor condição para uma criança nascer. Com as suas próprias mãos, arrancou de dentro de si a placenta e embrulhou-a juntamente com a criança num saco plástico antes de pôr o bebé, ainda vivo, num local visível e de fácil acesso no centro de Lisboa, para quem quer que viesse a encontrá-lo. De seguida, caminhou até à sua tenda com a certeza de que também não teria cuidados no puerpério.
Não somos mulheres?
A criança foi encontrada e todas as diligências foram feitas contra Sara.Os média não pouparam palavras desonestas e manchetes populistas. Nos dias que se seguiram, o mesmo estado que lhe negou direitos de cidadania, casa, comida e acesso ao SNS, entre opiniões mais e outras menos punitivistas, agiu: o tribunal de primeira instância condenou-a a 9 anos de prisão por tentativa de homicídio simples. A sentença dada pela opinião pública terá sido mais severa, uma vez que ela ficará eternizada como “a mulher que abandonou o bébé no lixo”, entre outras coisas como “aberração” e “desumana”. Tal qual aconteceu a muitas outras mulheres negras, julgadas aos olhos da branquitude no decorrer da história das colonizações de territórios pela Europa e da implementação de um ideal de feminilidade onde não cabiam os corpos de mulheres negras escravizadas, roma-ciganas e de povos originários. Os vários tipos de violência institucional sobre as mulheres negras viram-se sempre justificados. Daí não ter havido muito debate sobre as condições do parto de Sara: as mulheres negras não sentem dor como as mulheres brancas porque são “geneticamente mais fortes”, “não são bem mulheres”. Daí não ter havido muito alarido sobre as condições de salubridade do parto ou cuidados após o mesmo, as mulheres negras “são animalescas”.
Importa ter isso tudo em mente porque a Sara não teve acesso à possibilidade do aborto num Portugal onde a lei do aborto já tinha sido aprovada há 12 anos. E, mesmo com o tsunami de injúrias, ninguém protestou. Não caberá ao estado português a garantia das leis que são aprovadas pela Assembleia da República? Não foi a nossa luta para que o aborto fosse universal, de qualidade e público?
Duas vidas destruídas e muitos culpados – a quem serve a justiça em Portugal?
A Sara, que não devia ter sido presa sequer, vai ser solta por decisão do Supremo Tribunal de Justiça no próximo mês de Setembro de 2021, tendo cumprido 1 ano e 10 meses de pena. Depois de ter sido jogada para debaixo da ponte, exposta a condições desumanas e obrigada a manter uma gravidez indesejada. Depois de ter sido julgada publicamente, insultada, utilizada como exemplo de “distorção da natureza”. Não me atrevo a dizer que a diminuição da pena não é positiva nem que não é uma vitória de muitas pessoas que dedicam as suas vidas a fazer do sistema jurídico “mais justo”, mas o que me preocupa realmente é haver um enquadramento penal que possa permitir que mulheres como a Sara sejam punidas por “infanticídio” num contexto onde essas mesmas mulheres se viram expostas a condições que as levaram a ter uma vida miserável por inação do estado.
Assusta a ideia de viver num Portugal alimentado por uma lógica punitivista e que, não oferecendo dignidade, peca por só oferecer punições a Sara e a tantas outras mulheres em situações semelhantes.
É urgente garantir condições para vidas dignas. As mulheres negras, roma-ciganas, refugiadas e migrantes precisam que as leis lhe sirvam e Portugal precisa de leis mais igualitárias e de garantir o cumprimento das mesmas.