Desigualdades: quem beneficia quando o vírus sofre mutações? Contra o apartheid das vacinas

Texto de Leigh Phillips, originalmente publicado no Jacobin sob o título “Precisamos de um movimento contra o apartheid da vacina”. Tradução feita a partir da publicação de Viento Sur, “Desigualdades: ¿A quién beneficia que el virus mute? Contra el apartheid de las vacunas“, traduzido por Rebeca Moore

Com taxas altas de vacinação em grande parte do Ocidente, os países começaram a abrir depois de um ano e meio de bloqueios e outras medidas de saúde pública. Embora o número de casos da variante Delta esteja a aumentar no Reino Unido, Estados Unidos e noutros países do Norte global, desta vez o aumento não se traduz em aumento de óbitos. Graças às vacinas.

No entanto, a situação é muito mais complexa noutros lugares. No final de julho, a África registrou um aumento semanal de 43% nas mortes por covid-19. A taxa de mortalidade naquele continente (a proporção de mortes por casos confirmados) é agora de 2,6%, enquanto a média mundial é de 2,2%. A situação dos internados em cuidados intensivos é terrível: a mortalidade é de 48,2% (The Lancet, 22 de maio de 21), bem acima dos 31,5% da média mundial. O mais recente aumento nos casos foi resultado da frustração económica popular com as medidas de distanciamento social e outras restrições, da disseminação da variante Delta altamente transmissível do vírus e do acesso deficiente às vacinas. A situação é agravada por uma infraestrutura de saúde deficiente, com acesso limitado a suprimentos e equipamentos essenciais, especialmente oxigénio. Os países enfrentam o que Matshidiso Moeti, diretor regional da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a África, chama de barreira dupla: escassez de vacinas e défices no tratamento hospitalar.

Enquanto isso, a Pfizer, Astrazeneca e Johnson & Johnson pagaram 26 bilhões de dólares em lucros aos acionistas em maio e recompraram ações para aumentar o preço de suas ações no ano passado, de acordo com a People’s Vaccine Alliance, uma coligação de organizações de saúde, filantropos e ONGs que estimam que essa soma de dinheiro seria suficiente para vacinar todo o continente africano. Outra estimativa da People’s Vaccine Alliance: a pandemia criou nove novos bilionários farmaceuticos, cujo lucro combinado da Covid-19 chega a mais de 19 bilhões de dólares, o suficiente para vacinar completamente todas as pessoas de países com renda baixa 1,3 vezes. Os países mais pobres abrigam 10% da população mundial; entretanto, até o segundo trimestre deste ano, tinham recebido apenas 0,2% do suprimento mundial de vacinas.

Enquanto isso, oito bilionários com ações em empresas farmaceuticas que desenvolvem as vacinas COVID 19 viram a sua riqueza combinada crescer mais de 32 bilhões de dólares desde o início da pandemia, o suficiente para vacinar totalmente toda a população da Índia.

A corrida pela terceira dose

Embora apenas 1% dos que vivem em países menos desenvolvidos tenham recebido a primeira dose, em junho a Comissão Europeia assinou um acordo com a Moderna para obter 150 milhões de doses para uma terceira dose de reforço, a ser aplicada em 2022. Israel, um dos países mais rápidos a vacinar a sua população, começou em julho a oferecer as terceiras doses aos imunodeprimidos.

O raciocínio por trás disso é que nos deparamos com uma série do que a OMS chama de variantes preocupantes: mutações do SARS-CoV-2 que não apenas permitem que o vírus se espalhe mais facilmente ou causam doenças mais graves, mas que também reduzem a eficácia da vacina. As variantes preocupantes Beta, Delta e Gama foram identificadas pela primeira vez em países com baixas taxas de vacinação: Brasil, Índia e África do Sul. A quarta variante preocupante, Alfa, surgiu no Reino Unido em setembro do ano passado, antes que níveis altos de inoculação fossem alcançados. Ainda se estão a recolher evidências epidemiológicas para entender a ameaça exata representada pela variante Lambda, mas os dados preliminares sugerem que pode mais facilmente infectar células. Surgiu no Peru.

A razão é simples: as pessoas não vacinadas que são infectadas são fábricas de variantes. A maioria das mutações não oferece nenhum benefício reprodutivo e até prejudicam ativamente a reprodução do vírus. Mas, ocasionalmente, ocorre uma mutação que oferece vantagem, que permite que este supere outras linhagens do vírus e, por fim, se estabeleça como dominante. Essas são as variantes de preocupação. E quanto mais pessoas não forem vacinadas, maior será a hipótese de surgirem. Pela mesma razão, quanto mais pessoas forem vacinadas – especialmente porque agora está claro que a maioria das vacinas não são apenas extremamente eficazes na prevenção de doenças graves, mas também no bloqueio da maioria das infecções – menos variantes de preocupação haverá. Um vírus que não se pode espalhar não pode sofrer mutação.

Até agora, as vacinas de mRNA resistiram bem às variantes preocupantes que foram encontradas. Outros tipos de vacinas também estão a funcionar de forma decente, embora não tão bem. Mas os investigadores alertam que estão preocupados com a próxima onda de variantes, que pode realmente colocar as vacinas em apuros (Nature, 22, 21 de junho). E a dada altura, se surgirem mais variantes cuja resistência às vacinas torne o espectro de imunizadores significativamente menos eficaz, as doses de reforço podem ser necessárias. Mas ainda não é o caso.

No dia 8 de julho, após a Pfizer ter solicitado outra autorização para uso de emergência, desta vez para uma dose de reforço, a Food and Drug Administration e os Centros para Controle e Prevenção de Doenças emitiram uma declaração conjunta que criticou a empresa indiretamente.

“Os americanos que foram totalmente vacinados não precisam de uma dose de reforço neste momento”, diz o comunicado. E acrescenta que estão “comprometidos com um processo rigoroso de base científica para considerar quando e em que condições um reforço pode ser necessário”. Embora esse processo possa levar em consideração informações de empresas farmaceuticas, “não se baseia apenas nesses dados”. “Estamos prontos para doses de reforço, desde que a ciência mostre que são necessárias”, acrescentaram.

Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, reclamou, num vídeo divulgado em meados de julho, que os países já estavam a preparar a terceira dose, quando a maior parte do mundo sufoca e morre à espera da primeira. “Se há uma palavra para explicar isto, é ganância”, disse ele.

O mercado endémico e as doses anuais

É improvável que encontremos CEOs que admitam que estão à espera que mais e mais variantes de preocupação surjam, mas é difícil não pensar que, pelo menos em particular, a Delta, Lambda e os seus amigos devem ser presentes do céu para estes. É que, se a pandemia acabar, por mais exorbitante que tenha sido a quantidade de dinheiro ganho: sempre será menor do que o que seria obtido se a pandemia permanecesse conosco para sempre. As vacinas sofrem da mesma falha fatal de lucratividade que fez com que grandes empresas farmaceuticas abandonassem a maior parte da pesquisa e desenvolvimento de antibióticos nas últimas quatro décadas: uma vez que a infecção é curada, o paciente não precisa comprar o medicamento.

As condições crónicas são muito mais lucrativas, porque o paciente deve continuar a tomar o medicamento (ou submeter-se à forma de terapia correspondente) indefinidamente, às vezes todos os dias, para o resto da vida. A pesquisa e o desenvolvimento de vacinas têm sofrido com a falta de interesse das Big Pharma simultaneamente e pelo mesmo motivo. Mas as doses regulares de reforço levariam as vacinas COVID de uma ou duas ocasiões a uma oportunidade de lucro anual ou mesmo semestral.

Os executivos da indústria farmaceutica estão a ser, compreensivelmente, tão exigentes quanto possível ao discutir as variantes de preocupação e as consequências que têm para os lucros corporativos. Eles não querem que um repórter os encontre a esfregar as mãos de alegria, mas, ao mesmo tempo, precisam de tranquilizar os investidores sobre a probabilidade de uma repetição dos ganhos espetaculares de 2020 e 2021. Durante uma conferência virtual com acionistas no dia 4 de maio, para informar sobre os resultados do primeiro trimestre, o CEO da Pfizer, Albert Bourla, garantiu que haverá necessidade de reforços anuais “além dos dias 22 e 23“. “Esta é a razão pela qual basicamente todos os governos do mundo estão agora a discutir acordos de compra conosco para os dias 22, 23 e 24”, acrescentou (Nasdaq, 4-mai-21). Na mesma conferência, o diretor científico da empresa, Mikael Dolsten, disse que “a incapacidade de controlar [o vírus] em todo o mundo irá, é claro, levar a inúmeras mudanças na taxa de mutação viral.” Em vez de “esperar que a imunidade coletiva possa ser estabelecida em todo o mundo”, é provável que devamos contar com reforço regular e outras medidas contínuas de saúde pública, acrescentou.

Enquanto isso, a Moderna contou aos investidores uma história semelhante, durante o informe para relatar os lucros, em resposta às preocupações de que as taxas de vacinação estavam a diminuir. O CEO, Stéphane Bancel, rapidamente tranquilizou os investidores: “Acreditamos que nos próximos seis meses, à medida que o hemisfério sul entrar no inverno, veremos mais variantes de preocupação surgirem. Dissemos por agora que acreditamos que serão necessárias doses de reforço, pois pensamos que o vírus não irá desaparecer.” Conforme a empresa mudou para o que um investidor do Goldman Sachs chamou de mercado endémico – um mercado no qual o vírus está permanentemente entrincheirado – o seu foco mudou para proporcionar uma vacina contra a gripe sazonal combinada com uma dose de reforço para covid. Será um produto de injeção única que seria recebido a cada inverno na farmácia ou no gabinete médico.

Este é um momento crucial de honestidade, em desacordo com o que os políticos e funcionários continuam a dizer sobre a necessidade de atingir taxas de vacinação superiores a 80% para alcançar a imunidade global do grupo. Os capitalistas desistiram desse objetivo. E embora tenham o cuidado de deixar claro que pessoalmente não desejam essa situação, também deixam evidente para os investidores que este cenário é bom para os resultados financeiros.

É importante notar que no ano passado, durante o auge dos protestos Black Lives Matter, os chefes da Pfizer, Astrazeneca, Johnson & Johnson e mais de uma dúzia de outras empresas farmaceuticas – incluindo Kenneth Frazier da Merck, o único CEO farmaceutico afro-americano – emitiram comunicados em apoio ao movimento e se comprometeram a formar equipas e direções mais diversificadas. A Pfizer e outros até retiraram alguns anúncios do Facebook em resposta a preocupações sobre a disseminação do racismo na plataforma. Mas a verdade é que há 1,3 bilhão de negros na África que – pode-se ter certeza – prefeririam ser vacinados contra esta praga do que ler o quanto os executivos farmaceuticos aprenderam sobre si mesmos em workshops sobre “consciência racial” e “fragilidade branca”.

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