Aproximamo-nos das eleições autárquicas já marcadas para dia 26 de setembro. Ainda que não seja totalmente inédito neste tipo de eleições, desta vez as questões do racismo e da xenofobia vão ocupar um espaço como até agora não tinha acontecido. Isso é assim pelos piores e pelos melhores motivos. Os piores são conhecidos: pela primeira vez desde o 25 de Abril, um partido fascista e abertamente racista vai concorrer a eleições autárquicas – ainda que tal seja proibido pela constituição. Mas não é só o Chega que, nestas eleições, encarna a agenda racista da extrema-direita. A candidatura de Suzana Garcia pelo PSD à Câmara Municipal da Amadora é o exemplo mais crasso da infiltração do extremismo racista mesmo na direita tradicional.
No polo oposto, há igualmente novidades. Desta vez positivas. O reforço do movimento antirracista a que assistimos no nosso país e o protagonismo político crescente, nas ruas e nas instituições, de pessoas racializadas e do combate antirracista vai igualmente expressar-se nestas eleições. Isso sente-se no debate público em geral e nas propostas, sobretudo à esquerda, para combater esta e outras desigualdades. Expressão maior desta mudança em curso é a candidatura de Beatriz Gomes Dias à Câmara Municipal de Lisboa, pelo Bloco de Esquerda, por ser uma mulher racializada, mas não só – ela é sobretudo uma ativista antirracista que tem expressado na luta eleitoral e parlamentar o combate que tem sido feito por um amplo leque de movimentos.
É importantíssimo a esquerda portuguesa, neste caso com o Bloco de Esquerda a tomar a iniciativa, assumir a batalha da representatividade das pessoas racializadas. Uma esquerda que queira realmente espelhar quem trabalha em Portugal tem de ser mais negra, mais cigana, mais imigrante – mais diversa. Esse desafio é acompanhado por outro: o do estabelecimento de um programa antirracista de combate; um programa que se proponha a desmantelar o racismo sistémico, componente essencial do sistema de dominação capitalista em Portugal e no mundo. Não falamos de (apenas) fazer declarações genéricas contra o racismo; nem se trata da necessária, mas insuficiente, propaganda de que “não há capitalismo sem racismo”. Trata-se de propor medidas concretas que partam das experiências de vida e de luta das pessoas racializadas e que coloquem em causa o conjunto do sistema de opressão racista e xenófoba – que é o mesmo sistema que explora economicamente e oprime de tantas formas. Nas questões programáticas não se trata de “inventar a pólvora”; tampouco de elencar medidas avulso com o critério de serem as mais radicais ou, pelo contrário, suficientemente palatáveis. Trata-se, sobretudo, de ouvir as propostas dos movimentos e integra-las num programa concreto para uma realidade concreta (cada cidade, freguesia, região ou país) como parte de uma perspetiva antissitémica.
É deste prisma que queremos contribuir para o debate. Partimos das propostas elencadas pelo Bloco de Esquerda, cujas candidaturas apoiamos, e atentamos também no que tem vindo a ser acumulado e proposto nas discussões do movimento antirracista. Dessa base, sugerimos algumas propostas iniciais.
Quotas na administração local, habitação e outros serviços públicos
O estado é o maior empregador nacional e a administração local – câmaras e freguesias – um dos principais empregadores públicos. Pode, assim, ser um eixo de combate à desigualdade no emprego.
Posto isto, uma proposta antirracista de esquerda passa por instaurar quotas para pessoas racializadas na contratação para a administração local, inclusive com quotas específicas para determinadas comunidades como a comunidade cigana.
Um critério semelhante deveria constar no acesso a habitação a preços controlados e outros serviços geridos muitas vezes pelas autarquias – como é o caso das creches – em que deveria ser instaurado um sistema de forma a garantir uma prioridade relativa a pessoas racializadas. Na verdade, esta é apenas uma adaptação ao contexto autárquico de uma proposta que tem vindo a ser feita pelos movimentos antirracistas.
A instauração destas medidas seria uma primeira forma de concretizar o que o BE propõe no seu Manifesto Autárquico: “A elaboração e/ou atualização dos planos municipais para a integração de migrantes e de combate à discriminação, com a definição de estratégias e identificação de necessidades e dificuldades, apontando para as respostas específicas e adaptadas nas diversas áreas como a violência, o contexto escolar, a empregabilidade e a promoção de aquisição de habitação condigna”.
Meios para a autodeterminação das comunidades racializadas e imigrantes
A aplicação de quaisquer medidas não pode ser feita “de cima para baixo”. Assim como é necessária a criação de mecanismos que garantam que são as populações racializadas e imigrantes a protagonizar o combate à discriminação, mesmo aquele que passa por vias institucionais. É nesse sentido que o Bloco propõe, e bem, a “formação e contratação de mediadoras e mediadores escolares oriundos das classes racializadas mais representadas localmente.”
Esta lógica poderia expandir-se para fora do contexto escolar. Todas as autarquias deveriam instalar um gabinete em que técnicos e mediadores contratados pelo poder local, recrutados prioritariamente entre as comunidades racializadas de cada região, trabalhassem a par com associações, movimentos e representantes indicados pelas comunidades. Estes poderiam providenciar apoio social e jurídico específico; dinamizar campanhas e educação antirracista; acolher e encaminhar eventuais queixas de violência e discriminação racista e xenófoba; e, de uma forma geral, garantir os meios materiais e institucionais para que a população racializada seja protagonista das políticas pela igualdade. Nas maiores cidades e, sobretudo naquelas com grande presença de pessoas racializadas e imigrantes, estes gabinetes deveriam existir ao nível das freguesias, tão próximos quanto possível das próprias comunidades.
Não branquear cidades e ruas
Para uma última proposta, partimos de novo das propostas enunciadas pelo manifesto autárquico do Bloco em que é proposta “a divulgação das medidas de combate ao racismo e à xenofobia através de jornadas e formações, difundindo um conhecimento mais completo e rigoroso da história do país.” Um aspeto em que as autarquias têm poder decisório e que se relaciona com a desmistificação do passado escravocrata e colonial de Portugal é a toponímia – o nome das nossas ruas, avenidas, praças, etc. Apesar de o 25 de Abril ter limpado as referências mais evidentes ao fascismo, muito do passado sangrento e colonial do país permanece glorificado em nomes de ruas e não só. Personalidades como o General José Augusto Roçadas, responsável pelo massacre de Pembe em Angola ou o General José Norton de Matos, ex-ministro das colónias, dão nome a inúmeras ruas, avenidas e praças. Ou pensemos em tantas outras que louvam os “heróis do ultramar” e os seus feitos. O mesmo relativamente a tantas outras que envergam os nomes de Vasco da Gama, Gil Eanes, Pedro Álvares Cabral, etc…
Este é um campo que merece intervenção. Em alguns casos mudando a toponímia; noutros, como em casos de estatuária ou outro património que remeta para o passado colonial, passaria por intervir de forma a retirar ou enquadrar, pedagógica e criticamente, as referências ao passado colonial e escravocrata. Tal não poderia ser pensado como uma soma de medidas administrativas avulsas, mas como uma campanha em cada cidade e – se possível – em todo o país, que levasse o poder e sobretudo a população a lançar um novo olhar sobre a história do país. Não deveria ser encarado como uma medida simbólica, mas como uma reparação de facto que deveria acompanhar e potenciar outras medidas como a revisão dos materiais escolares.
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Todas estas políticas encontrariam resistência e não é certo que sejam sempre eleitoralmente fáceis – ainda que nada garanta que sejam eleitoralmente prejudiciais. Seriam, todas elas, momentos e formas de disputa política. No combate contra o racismo e a xenofobia, como em todos os grandes desafio políticos, não há caminhos fáceis, paulatinos e conciliadores que possam vencer. Aliás, a direita e a extrema-direita já o entenderam e por isso apostam numa radicalização racista e xenófoba. O caminho da esquerda passa por construir um polo oposto, radicalmente contra o ódio, a intolerância e as desigualdades – também nestas eleições autárquicas.