O colectivo Feministas.pt tem feito, desde o inicio do ano, um curso sobre feminismos, abordando as principais problemáticas do movimento feminista nacional e internacional, as teorias e as teóricas. Tem feito sessões mensais com diversas convidadas e o debate tem sido enriquecedor.
A sexta sessão do curso foi sobre “Interseccionalidade e género, classe e raça a partir das obras de Kimberlé Crenshaw e Angela Davis” e contou com a participação de Lívia Duarte, vereadora do PSOL no Brasil e Beatriz Gomes Dias, deputada do Bloco de Esquerda e candidata à Câmara Municipal de Lisboa. A moderação foi feita por Aliyah Bhikha.
Ambas as oradoras trouxeram importantes contributos para o debate, partindo das suas experiências pessoais e cruzando-as com as elaborações teóricas das feministas negras intersecionais em análise.
Lívia Duarte abordou a atualidade brasileira, um país fustigado pela COVID-19 e pelas políticas genocidas de Bolsonaro, onde os corpos somam as opressões, evidenciado nas mortes de pessoas negras e nas campanhas de vacinação que distinguem as pessoas pela sua cor, origem social e género, deixando sempre as mesmas pessoas para último. A vereadora trouxe os estudos da teórica feminista marxista brasileira Lélia Gonzalez, que explica o racismo enquanto neurose cultural brasileira, um fenomeno que afecta profundamento o intimo, o incosciente das pessoas, construido sobre a premissa da hegemonia branca universal, tornado a discussão sobre racismo no Brasil dificil pois as pessoas negras muitas vezes se rejeitam enquanto negras, vivendo o mito da democracia racial. Lívia reafirma que o compromisso das feministas e mulheres negras é internacional, emancipatória, evocando a memória de Marielle Franco. As mulheres negras, falou Lívia, combinaram de não morrer.
Beatriz Gomes Dias debruçou-se sobre as múltiplas opressões e a sua expressão no quotidiano das mulheres negras, explicando que quem não quer ver as desigualdades falha nas respostas políticas – é necessário o movimento social e os decisores políticos se apropriarem dos conceitos e reconhecerem os múltiplos recortes necessários no desenho de políticas públicas para responder às especificidades. A deputada referiu-se várias vezes ao estudo de Crenshaw sobre os lugares de exclusão a que estão destinadas as mulheres negras, face à universalidade do branco e à universalidade do homem, visível no caso das mulheres negras contra a General Motors em 1976, que despoletou a visão interseccional da investigadora.
Sendo candidata à CML, Beatriz Gomes Dias dedicou parte da sua fala à necessidade de representatividade das mulheres negras nos lugares de decisão como forma de combater a invisibilidade destes corpos mas também sobre a importância da recolha de dados étnico-raciais (visível no Brasil e nos EUA) que permitem desenhar os territórios e as necessidades das populações consoante o género, raça, classe social e assim responder à altura das realidades. Em Lisboa políticas de habitação acessível, rede de transportes públicos gratuitos, quotas no acesso a trabalho, bem como direitos para as trabalhadoras em situações específicas (da periferia, afrodescendentes, LGBTI+, pobres), creches com horários adequados ao horário de trabalho das famílias, acesso a cuidados de saúde e combate à violência obstetra sobre mulheres racializadas e mulheres imigrantes e refugiadas são formas concretas de remover os obstáculos colocados pela racismo sistémico.
Ambas as intervenientes dedicaram espaço à discussão sobre os processos de colonização, especialmente na relação Brasil-Portugal como processo fundamental para entender e trabalhar o racismo perpetuado nas sociedades atuais. O mito da democracia racial no Brasil, o mito do bom colonizador e as ideias de lusotropicalismo afectam enormemente a consciência das pessoas e desconstruir estes conceitos é imprescendível na luta antirracista e anticapitalista.
Saudamos o excelente debate e os importantes contributos das oradores para uma visão interseccional, antirracista e feminista das nossas vidas e da política.