Hoje, 18 de junho de 2021, assinalam-se 11 anos da morte de José Saramago. A data é mais marcante dado que nos aproximamos do centenário do seu nascimento. Muito se escreveu e escreverá sobre ele nestas dias e meses. Porque foi um grande escritor. Porque foi um grande escritor num pequeno país e para ele trouxe um Nobel. Porque foi um cidadão ativo incansável, militante até, na defesa daqueles que nada têm e tudo produzem – ou apesar disso. E também porque já não se encontra entre nós, pois, mais que os prémios, foi a morte que teceu a benévola unanimidade em torno deste escritor que em vida tão pouco a ela foi dado e dela raramente beneficiou. Pelo que não há muito que aqui se possa dizer que valha mais do que o tanto que já se disse e se dirá sobre este serralheiro de formação e escritor de profissão nascido uma aldeia remota do Ribatejo.
Sobre a sua obra e tudo o em torno dela gira – e quase tudo o que é humano pode se relacionar ela, como com todas as obras dos grandes autores – serão proliferas as atividades nos próximos meses. A Fundação José Saramago apresentou recentemente um plano de comemorações do centenário do escritor no próximo ano e que promete fazer jus à sua memória e legado – literário, mas não só.
Pelo que nos centramos aqui a homenagear aquilo que podemos chamar a visão de mundo saramaguiana – e do papel do escritor no mundo. Poderíamos fazê-lo lembrando como nos seus romances deu tantas vez voz aqueles que tendo-a raramente a viram ser protagonista literária – a não ser quando eram objetos de idealizações doutrinários de escolas realistas ditas soviéticas. Se por aí ingressássemos, lembraríamos Baltazar, construtor do Convento de Mafra no Memorial que Saramago lhe ergueu. Ou Mogueime, soldado raso da História do Cerco de Lisboa que nela rouba protagonismo ao rei cognomeado O Conquistador. Ou ainda Raimundo Silva, revisor literário que, nesta mesma História retrata os bastidores humildes da labuta literária, que vive não só das estrelas autorais, mas também de revisores e de outros operários do texto. Mas poderíamos, sobretudo, lembrar Blimunda, Lídia ou A Mulher do Médico, do Memorial do Convento, d’O Ano da Morte de Ricardo Reis ou do Ensaio sobre a Cegueira. Nelas reconheceríamos o quase proto-feminismo de um autor que escreveu sobre o “conhecido facto de serem os homens, todos eles, umas perfeitas crianças” – referindo-se aqui a palavra “homens” não à humanidade, mas à masculinidade.
Poderíamos ainda memorar o já canónico episódio da censura governamental e serôdia ao Evangelho Segundo Jesus Cristo, por nele Saramago retratar Jesus como vítima das perversões de Deus que desgovernam a humanidade. Mas para isso teríamos de nomear nomes que melhor cabem no esquecimento, como o do bacoco secretário de estado que se empenhou nessa cruzada.
Mas, tanto ou mais que nos seus romances, é na vida de Saramago que encontramos registo da sua forma comprometida, humanista e comunista, de estar no mundo. Pelo que estas linhas poderiam multiplicar-se na rememoração de episódios que atestam essa forma de estar do escritor. Falaríamos então da sua adesão ao Partido Comunista Português, ainda em tempos de ditadura, e do seu papel na Revolução da Abril, em que foi voz de uma sensibilidade gonçalvista, que, não obstante inúmeras falhas, tensionava pela esquerda o partido de Álvaro Cunhal. Referíamos o protagonismo do escritor na luta contra a guerra do Iraque. Mencionaríamos a sua ácida e certeira crítica ao apartheid sionista na Palestina. Faríamos contar o seu apoio à insurreição zapatista de Chiapas. E não nos esqueceríamos até de lembrar a forma como soube combinar uma adesão sincera ao seu partido de sempre, o PCP, com posições críticas que o levaram até à demissão de Presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, por não aceitar cedências a que obrigava a coligação com o PS nesse momento em vigor.
Contudo, mais exemplares e demonstrativas do que tudo isso sobre o que nos poderíamos debruçar, são as palavras do autor. Por isso, reproduzimos abaixo um texto não tão conhecido de José Saramago sobre o racismo em que instiga os escritores a abraçar o combate contra essa chaga sistémica. Além de serem tão ou mais atuais hoje do que no momento em que foram escritas, são palavras que além de nos falarem sobre o combate ao racismo e à xenofobia, dizem muito sobre como Saramago via o seu papel de escritor no mundo.
Leiamos então José Saramago.
Aí está o racismo, aqui estão os escritores.
A questão parece bastante clara à simples vista: sendo o racismo uma expressão configuradora, e até agora inseparável, da espécie humana, com raízes tão antigas, provavelmente, como o dia em que se deu o primeiro encontro entre hominídeos ruivos e hominídeos negros; presumindo os escritores, por sua vez, de serem e merecerem ser os guias espirituais da nossa confusa humanidade, mesmo se, por ela lhes ter virado as costas, deixaram de estar em moda os maître-à-penser — a resposta a uma interpelação a eles dirigida seria, provavelmente, a redacção de um milésimo manifesto, de uma milésima condenação do racismo e da intolerância xenófoba, subscrita por todos os escritores deste nosso prolixo mundo, do primeiro ao último, se é que para eles também existe, algures, uma classificação por pontos, como a dos tenistas, que só precisa de olhar a tabela para saberem quanto valem…
Desgraçadamente, estas coisas não são tão simples, por muito abundante que tenha sido, nos últimos tempos, a produção de tais documentos condenatórios, que, deixando invariavelmente intacta e irremovida a causa do protesto, para pouco mais servem que rebustecer a boa imagem que de nós próprios queremos ter. O problema não estará tanto em discutir sobre a necessidade de proclamar aos quatro ventos o que os escritores deveriam fazer contra o racismo e a xenofobia — estaríamos, neste caso, no domínio das puras obviedades —, mas em começar por averiguar se o racismo e a xenofobia, nas suas diversas expressões (desde a degenerescência violenta de aspirações nacionais histórica e culturalmente justificadas, até à ameaçadora ressurreição de doutrinas mais recentes de exclusão, perseguição e morte), não estarão a beneficiar dos silêncios da tribo literária, aproveitando o vazio resultante do alheamento social defendido por muitos escritores, em nome de critérios de liberdade e independência intelectual alegadamente superiores, que os levaram ao que chamam o seu compromisso pessoal exclusivo com a escrita e com a obra. Por outras palavras: trata-se de saber se os escritores de hoje, que, por indolência do espírito ou insuficiência da vontade, renunciaram a um papel interventivo, estarão decididos a manter-se indiferentes ao que está sucedendo à sua porta, vivendo por conta própria, tanto nas acções como nas omissões, a inumana «regra de ouro» de Ricardo Reis, aquele outro-eu classicizante de Fernando Pessoa que um dia escreveu, sem que a mão lhe tremesse e a face lhe corasse de vergonha:
«Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo…»
Todas as causas do racismo foram já identificadas, desde a proposição política de objectivos de apropriação territorial, dando com pretexto supostas “purezas étnicas” que frequentemente não duvidam adornar-se com as névoas do mito, até à crise económica e à pressão demográfica, que, não carecendo, em princípio, de invocar justificações exteriores à sua própria necessidade, contudo não as desdenham se, num momento agudo dessa mesma crise, for considerado útil o recurso táctico a tão adequados potenciadores ideológicos, os quais, por sua vez, num segundo tempo, poderão vir a transformar-se em móbil estratégico autossuficiente. Infelizmente, os surtos de racismo e xenofobia, sejam quais forem as suas raízes históricas e as suas causas próximas, encontram, em geral, facilitadas as suas operações de corrupção das consciências públicas e privadas, entorpecidas, umas e outras, por egoísmos pessoais ou de classe, logo eticamente diminuídas, paralisadas pelo temor cobarde de parecerem pouco «patrióticas» ou pouco «crentes», segundo os casos, em comparação com a insolente propaganda racista ou confessional que, aos poucos, vai despertando a besta que dorme dentro de nós, até a fazer saltar à luz do dia — para a intolerância, para a violência, para o crime. Nada disto deveria surpreender-nos, e contudo, uma vez mais, com desconcertante ingenuidade, se não com censurável hipocrisia, andamos por aí a perguntar-nos como foi possível ter regressado a praga depois de a termos julgado extinta para sempre, em que mundo terrível estamos, afinal, vivendo, quando pensávamos ter progredido tanto em cultura, civilização e direitos humanos.
Que esta civilização — e não me refiro somente ao que denominamos civilização ocidental, mas a todas, desenvolvidas ou atrasadas, que estão sofrendo o choque das rápidas transformações do nosso tempo, tanto as científicas e tecnológicas como as morais e axiológicas —, que esta civilização está a chegar ao seu termo, parece não oferecer dúvidas a ninguém. Que entre os escombros e avatares dos regimes e dossistemas—socialismos pervertidos ecapitalismos perversos — começam a esboçar-se recomposições novas dos velhos materiais, eventualmente articuláveis entre si, ou, ainda que ligados pela lógica de ferro da interdependência económica e da globalização informática, prosseguindo com estratégias aperfeiçoadas os conflitos de sempre — tudo isto parece ser, igualmente, bastante claro. De um modo muito menos evidente, talvez por pertencer ao que denominarei, metaforicamente, as ondulações do espírito humano, creio ser possível identificar na circulação das ideias um impulso tendencialmente dirigido a um novo equilíbrio, a uma «reorganização» axiológica que deveria supor, a par do pleno exercício dos direitos humanos, uma redefinição dos seus deveres, hoje tão pouco estimados, passando a colocar-se, ao lado da carta dos direitos do homem, a carta imperativa e indeclinável das suas obrigações. Ora, se não me equivoco demasiado, esta reflexão que parece querer despontar no meio das nossas perplexidades, teria de começar por proceder ao reexame e crítica de alguns conceitos correntes, apesar de esplêndidos e generosos, que fazem parte, por contraste e em enganadora antonímia, daquele universo vocabular em que reinam, efectivamente, como sombrios e terríveis astros, a xenofobia e o racismo. Refiro-me, em particular, à tolerância, essa palavra que tem feito correr rios de tinta, tantos como a sua contraria e irredutível inimiga — a intolerância.
Dizem-nos os dicionários que «tolerância» e «intolerância» são conceitos extremos e incompatíveis entre si, e, por este modo os definindo, concitam-nos a situar-nos, com exclusão de outras alternativas, em um daqueles dois polos, como se, além deles, não pudesse existir outro espaço, o espaço do encontro e da solidariedade. Desse espaço não temos a palavra identificadora, não temos, para chegar a ele, a bússola, a carta de rumos. Mas, se não está nos dicionários a palavra, é só porque não possuímos a consciência que a teria feito nascer, é só porque não levamos no coração o sentimento que lhe conferiria uma definitiva humanidade: parafraseando remotamente Marx, direi que os homens não podem, antes do tempo certo, criar as palavras de que, sem o saberem, ou não querendo ainda sabê-lo, vitalmente já estavam necessitando… Ponderadas as situações, observados os comportamentos, que é a tolerância senão uma intolerância ainda capaz de vigiar-se a si mesma, mas temerosa de ver-se denunciada aos seus próprios olhos, sob a ameaça do momento em que as novas circunstâncias lhe arranquem a máscara que outras circunstâncias, de sinal contrário, lhe haviam colado à pele, como se aparentemente fosse já a sua própria? Quantas pessoas, hoje intolerantes, eram tolerantes ainda ontem?
Que papel poderá então desempenhar o escritor,
… parece ter sido definitivamente retirada a antiga missão, tacitamente compreendida e reconhecida pela sociedade, de abrir caminho às verdades possíveis? Que dirá, que escreverá ele, se cada vez se vem tornando mais óbvia a impotência da literatura, de cada obra literária e de todas elas juntas, para influir de modo profundo e permanente na vida social? Se as sociedades não se deixam transformar pela literatura, se, pelo contrario, é a literatura que se encontra hoje assediada por sociedades que não lhe pedem mais do que as fáceis variantes duma mesma anestesia do espírito, isto é, a frivolidade e a brutalidade, como poderemos fazer intervir socialmente a voz e a acção dos escritores, ao menos daqueles a quem o compromisso com a escrita, absoluto ou relativo seja ele, não fez esquecer as suas obrigações, relativas e absolutas, de cidadãos?
Publicar artigos, dar entrevistas, fazer conferências, são tarefas que decorrem daquilo que é o acto central do escritor: escrever. Com independência da natureza, exigência e singularidade da obra a que o escritor decidiu consagrar a vida – ou, em palavras menos solenes, o tempo, o talento e a paciência -, apetece dizer que todas as ocasiões deveriam ser aproveitadas por ele para glosar, já com pacíficos motivos, o dito de Cícero, quando no fim do seus discursos, viesse ou não a propósito, exigia a destruição de Cartago. As Cartagos de hoje chamam-se Intolerância, Xenofobia, Racismo, e nunca serão vencidas se não empenharmos no combate, escritores e não escritores, aqueles mesmos ingredientes com que se faz a obra literária – a paciência, o talento e o tempo, por esta ordem ou outra qualquer.
Mas, dos escritores, convoquemos sobretudo a esta luta a concreta figura de homem ou de mulher que está por trás dos livros, não para que ela ou ele nos digam como foi que escreveram as suas grandes ou pequenas obras (o mais certo é não o saberem eles próprios), não para que nos eduquem ou guiem com as suas lições (que muitas vezes são os primeiros a não seguir), mas para que simplesmente se nos mostrem todos os dias como cidadãos deste presente, ainda que, como escritores, creiam estar trabalhando para o futuro. Não se pede que retomemos (se para tal não encontramos no nosso foro íntimo motivos nem razões) os caminhos de natureza sociológica, ideológica ou política que, com resultados estéticos variáveis, levaram ao que se chamou literatura comprometida – mas que tenhamos a honestidade de reconhecer que os escritores, em grande maioria, deixaram eles próprios de comprometer-se, e que algumas das hábeis teorizações com que hoje nos envolvemos acabaram por construir-se como escapatórias intelectuais, modos mais ou menos brilhantes de disfarçar a má consciência, o mal-estar de um grupo de pessoas – os escritores, precisamente – que, depois de se terem proclamado a si mesmas como farol do mundo, estão acrescentando agora, à escuridão intrínseca do acto criador, as trevas da renúncia e da abdicação cívicas.
Ensaio escrito em 1996 e publicado no n.º 99 da revista Blimunda
A imagem que ilustra este artigo é de uma obra de Vihls feita num pontão junto ao mar na Lourinhã