Uma das declarações mais repetidas ao longo do último ano, desde que começaram os confinamentos devido à epidemia de COVID-19, é a de que a epidemia é uma oportunidade de mudança na forma como a nossa sociedade se organiza. Quando olhamos para a situação à escala global e às causas que levam à eclosão deste tipo de epidemias, a exploração intensiva dos recursos e a destruição progressiva das últimas regiões selvagens do planeta, não parece haver muita razão para otimismo pois os interesses capitalistas movimentam-se para que tudo volte a funcionar como antes o mais depressa possível.
Mas essas mudanças são de facto necessárias, quer a nível internacional quer a nível nacional. O governo de António Costa fala da necessidade de mudança, mas os factos fazem-nos duvidar que por trás dessas palavras haja alguma substância. Portugal foi um dos estados da União Europeia que menos despesas teve no combate à crise epidémica e económica. Costa deixou por executar cerca de 7 mil milhões de euros do orçamento de estado de 2020, um sinal evidente de que continua a ter a contenção do défice no centro da sua política orçamental. A União Europeia suspendeu as regras do défice pelo menos até 2022, e Ursula von der Leyen anunciou que “os governos poderão injetar na economia aquilo que necessitarem”. Mas a ameaça da reposição da regra dos 3% não está totalmente afastada e muitos governos avançam timidamente nas suas despesas com medo de futuras represálias orçamentais. Parece ser essa a abordagem de Costa, que aposta na contenção orçamental e tenta fazer o brilharete possível com os fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). O PRR representa para Portugal o acesso a 14 mil milhões de euros para serem gastos até 2026. É uma quantia substancial, mas corresponde a menos que o orçamento conjunto da saúde e da educação em 2020. Não é difícil de prever que o PRR e a contenção orçamental não vão permitir levar a cabo as alterações estruturais de que o país precisa.
Para que essas alterações fossem possíveis, a primeira medida necessária seria a abolição definitiva das regras de contenção orçamental, para permitir aos governos fazer as despesas necessárias para a recuperação social e económica. Essa medida representaria um corte importante com a ortodoxia neoliberal que tem orientado a política europeia nas últimas décadas e daria um sinal de esperança de que as coisas podem realmente mudar.
Este ano de epidemia deixou expostas as muitas fragilidades da economia e sociedade portuguesas e é necessário tomar medidas destinadas a melhorar a vida das pessoas e preservar o planeta. O investimento no SNS, nos seus profissionais e carreiras e na sua infraestrutura, é a mais urgente dessas medidas pois o SNS, ao garantir que ninguém fica sem acesso a qualquer tratamento por falta de dinheiro é o garante de patamares mínimos de igualdade. O investimento numa rede de lares e cuidados para idosos, com condições decentes para todos e cuidadores em número suficiente é uma questão absolutamente urgente num país com uma população cada vez mais envelhecida. O acesso a habitação digna a preços acessíveis para todos e o fim dos despejos é também uma questão central pois, como se viu no último ano, as casas sobrelotadas em que os trabalhadores mais precários têm de viver foram importantes focos de contaminação de COVID-19. Para isso a especulação imobiliária tem de acabar, é necessário conter e regulamentar de forma mais apertada o turismo, é preciso pôr de lado definitivamente a construção do novo aeroporto e voltar a diversificar a economia das cidades. É preciso mais transportes públicos e gratuitos e menos carros, mais cultura e menos centros comerciais. A situação em Odemira é mais um exemplo de como a destruição do ambiente está a ser feita através da exploração, da violência e do racismo sobre trabalhadores rurais imigrantes. Estes tem que ser protegidos pelos direitos do trabalho e pelos direitos humanos! A prioridade deve ser garantir habitação digna para todos, sem recurso a aldeias de contentores. E garantir a regularização dos imigrantes que tenham processos pendentes, tornando-os menos vulneráveis no trabalho e perante as máfias e as empresas que os exploram devem ser investigadas e punidas. É necessário um plano nacional de combate ao racismo.
A escolha é clara. As coisas não podem voltar ao que eram porque o nosso planeta e a nossa sociedade estão a ser levados ao limite.
É preciso unir forças e mobilizações para alcançar a mudança!