No 203º aniversário do nascimento de Karl Marx, traduzimos um texto do revolucionário italiano Antonio Gramsci, escrito aquando do centenário do filósofo alemão.1
Somos marxistas? Os marxistas existem? Estupidez, só tu és imortal. A questão provavelmente será retomada nos próximos dias, o período em torno do centenário de Marx, e fará correr rios de tinta e estultícia. O vanilóquio e o bizantinismo são património imarcescível dos homens. Marx não escreveu uma doutrina qualquer, não é messias que tenha deixado uma série de parábolas cheias de imperativos categóricos, de normas indiscutíveis, absolutas, fora das categorias de tempo e espaço. Único imperativo categórico, única norma: “proletários de todo o mundo: uni-vos!”. O dever de organizar, a propaganda do dever de organizar e se associar, deve, portanto, ser o que distingue os marxistas dos não marxistas. Muito pouco e muito: quem neste caso não seria marxista?
E, no entanto, é assim que as coisas são. Toda a gente é meio marxista, sem saber disso. Marx foi grande, sua ação foi fecunda, não porque inventou do nada, não porque extraiu de sua imaginação uma visão original da história, mas porque nele o fragmentário, o incompleto, o imaturo se tornou maturidade, sistema, consciência. A sua consciência pessoal pode tornar-se a de todos, já se tornou a de muitas pessoas: por isso Marx não é apenas um estudioso, é um homem de ação; ele é grande e fecundo na ação como no pensamento, seus livros transformaram o mundo, assim como transformaram o pensamento.
Marx significa a entrada da inteligência na história da humanidade, o reino da consciência.
A sua obra ocorre exatamente no mesmo período da grande batalha entre Thomas Carlyle2 e Herbert Spencer3 sobre o papel do homem na história.
Carlyle: o herói, o grande indivíduo, a síntese mística de uma comunhão espiritual, conduz os destinos da humanidade para uma meta desconhecida e evanescente na terra quimérica da perfeição e da santidade.
Spencer: natureza, evolução, abstração mecânica e inanimada. Homem: átomo de um organismo natural, que obedece a uma lei que é abstrata como tal, mas que se torna historicamente concreta nos indivíduos: utilidade imediata.
Marx instala-se diretamente na história com o porte sólido de um gigante. Ele não é um metafísico místico nem positivista. Ele é um historiador, é um intérprete dos documentos do passado, de todos os documentos, não apenas de uma parte deles.
Esse era o defeito intrínseco da História, da pesquisa dos acontecimentos humanos: ter examinado e levado em consideração apenas uma parte dos documentos. E essa parte foi escolhida não pela vontade histórica, mas por preconceito partidário, ainda que inconsciente e de boa fé. O que esta pesquisa visava não era a verdade, a precisão, a recriação integral da vida do passado, mas o destaque de uma atividade particular, a sustentação de uma hipótese anterior. A História era um domínio exclusivamente de ideias. O homem era considerado espírito, pura consciência. Duas consequências erróneas derivaram dessa conceção: as ideias que surgiram eram frequentemente meramente arbitrárias, fictícias. Os factos que receberam importância eram anedotas, não História. Se a História foi escrita, no verdadeiro sentido da palavra, foi devido à brilhante intuição de indivíduos isolados, não a uma atividade científica sistemática e consciente.
Com Marx, a História continua a ser o domínio das ideias, do espírito, da atividade consciente de indivíduos isolados ou associados. Mas as ideias, o espírito, ganham substância, perdem a arbitrariedade, não são mais abstrações religiosas ou sociológicas fictícias. A sua substância está na economia, na atividade prática, nos sistemas e relações de produção e troca. A História como aquilo que acontece é pura atividade prática (económica e moral). Uma ideia torna-se real não porque está logicamente em conformidade com a verdade pura, a humanidade pura (que existe apenas como um plano, como um objetivo ético geral da humanidade), mas porque encontra na realidade económica sua justificativa, o instrumento com o qual pode ser realizada. Para saber com precisão quais são os fins históricos de um país, uma sociedade, um agrupamento social, é preciso saber antes de tudo quais são os sistemas e relações de produção e troca que existem naquele país, naquela sociedade. Sem este conhecimento poder-se-á escrever monografias parciais, dissertações úteis para a História da cultura, captar-se-ão reflexões secundárias, consequências distantes, mas não se estará fazendo história, a atividade prática não se revelará em toda a sua sólida complexidade.
Os ídolos desmoronam do seu altar, as divindades veem as nuvens de incenso perfumado dispersarem-se. O homem adquire uma consciência da realidade objetiva, ele domina o segredo que está por trás do real desenrolar dos eventos. O homem conhece-se a si mesmo, sabe quanto pode valer sua vontade individual e como ela pode se tornar mais poderosa no sentido de que, obedecendo, disciplinando-se à necessidade, finalmente domina a própria necessidade, identificando-a com seus próprios fins. Quem se conhece a si mesmo? Não o homem em geral, mas aquele que sofre o jugo da necessidade. A busca pela substância da História, a identificação dessa substância no sistema e as relações de produção e troca, leva a descobrir como a sociedade humana se divide em duas classes. A classe que possui os meios de produção já se conhece necessariamente, tem consciência, ainda que confusa e fragmentária, de seu poder e da sua missão. Tem fins individuais e atinge-os pela capacidade de se organizar, com frieza, objetividade, sem se preocupar se o seu caminho é pavimentado com corpos reduzidos pela fome ou por cadáveres nos campos de batalha.
A organização da causalidade histórica real assume o valor de uma revelação para a outra classe, torna-se um princípio ordenador para o enorme rebanho sem pastor. O rebanho adquire consciência de si mesmo, da tarefa que agora deve cumprir para se afirmar como classe, torna-se consciente de que seus fins individuais permanecerão puramente arbitrários, palavras puras, desejos vazios e insuflados, até que possua as ferramentas. até que esses desejos se tornem vontade.
Voluntarismo? A palavra não tem sentido ou é usada com o significado de vontade arbitrária. Vontade, no sentido marxista, significa consciência dos fins, o que por sua vez significa conhecimento exato do próprio poder e dos meios para expressá-lo em ação. Significa, portanto, em primeiro lugar, que a classe se torna distinta e se individualiza, organizada e disciplinada de forma compacta para atingir os seus próprios fins específicos, sem vacilar ou ser desviada. É um impulso que atua em linha reta em direção ao destino máximo, sem passeios pelos prados verdes à beira do caminho para beber um copo de fraternidade cordial, suavizado pelo verde e por ternas declarações de respeito e amor.
Mas a frase “no sentido marxista” é inútil; pode dar origem a equívocos e estúpidos derramamentos de palavras. Marxista, no sentido marxista … esses termos são usados como moedas que passaram por muitas mãos.
Karl Marx é para nós um mestre da vida espiritual e moral, não um pastor empunhando um cajado. Ele é o estimulador da preguiça mental, o despertador das boas energias que adormecem e que devem despertar para o bom combate. É um exemplo de trabalho intenso e tenaz para alcançar a límpida honestidade das ideias, a sólida cultura necessária para não falar no vazio, sobre abstrações. Ele é um bloco monolítico de conhecer e pensar a humanidade, que não examina a língua para falar, que não põe a mão no coração para sentir, mas que constrói silogismos de ferro que circundam a realidade na sua essência e dominam, que penetram as mentes, que quebram a sedimentação de preconceitos e destruindo os preconceitos, fortalecendo o caráter moral.
Karl Marx não é, para nós, a criança tagarela no berço ou o barbudo que assusta os padres. Ele não é nenhum dos episódios anedóticos de sua biografia, nenhum gesto brilhante ou grosseiro da sua exterior animalidade humana. É um cérebro pensante amplo e sereno, é um momento individual na busca ansiosa que a humanidade vem realizando há séculos para adquirir consciência de seu ser e de seu devir, de captar o ritmo misterioso da História e de dispersar o mistério, de ser mais forte. em seu pensamento e em agir melhor. Ele é uma parte necessária e integrante de nosso espírito, que não seria o que é se não tivesse vivido, não tivesse pensado, não tivesse enviado faíscas de luz voando do choque com suas paixões e suas ideias, dos seus sofrimentos e dos seus ideais.
Ao glorificar Karl Marx no centenário de seu nascimento, o proletariado internacional está se glorificando a si mesmo, sua força consciente, o dinamismo de sua agressividade de conquista que mina o regime de privilégio e se prepara para a luta final que coroará todos os seus esforços e todos os seus. sacrifícios
- Traduzido por Manuel Afonso, a partir da Monthly Review Online;
2. Thomas Carlyle foi um escritor, historiador, ensaísta e professor escocês durante a era vitoriana;
3. Herbert Spencer foi uma antropólogo e biólogo inglês, influenciado pelas ideias de Charles Darwin e pelo Liberalismo;