Parte 3 de 4
(Entrevista conduzida por André Leal com perguntas formuladas pela Ana Luísa Martins)
Primeira parte da entrevista
Segunda parte da entrevista
No contexto terrível de pandemia que vivemos, um teste para qualquer sistema de saúde, como é que, na tua opinião, se saiu o SNS em Portugal?
Globalmente, sou da opinião que o SNS se saiu bem. Surpreendentemente bem, até, em função de carências crónicas que já datavam de antes da pandemia – um arrastado subfinanciamento, e a incapacidade política de o ir ajustando, reestruturando, em função da evolução das necessidades emergentes. Mas, na análise geral das decisões face à pandemia, há dois planos distintos que importa distinguir: as decisões políticas globais, por um lado, e a resposta do SNS, por outro.
No primeiro plano, a oportunidade e adequação do confina/desconfina e as decorrentes restrições às atividades normais do dia a dia dos cidadãos. Penso que, neste plano, e apesar da crise de janeiro e fevereiro, as decisões foram maioritariamente adequadas. Poderia, eventualmente, ter havido lugar a outras medidas. Só que essa estrada não estava feita, foi sendo feita a cada momento, foi-se tentando adivinhar metro a metro o que seria o metro seguinte e, portanto, é natural que tenham havido falhas naturais.
Mas, e esta sim é uma falha evitável, foi sentida a falta de um grupo de trabalho permanente de peritos encarregado de consensualizar posições e medidas a serem propostas à governação. Dir-me-ão que houve, é certo, as reuniões formais no Infarmed onde peritos, de 15 em 15 dias, ou até de forma mais espaçada, fizeram as suas comunicações sobre investigação epidemiológica, estatística, virologia… falando cada um por si, mas sem que antes tivessem sido gerados os consensos possíveis sobre as decisões a tomar.
Mas não, não é disso que falo. Falo de uma task force (como agora se diz…), integrada por especialistas encarregados de, diariamente, monitorizarem a situação e aconselharem o governo.
Mas também se registaram problemas na comunicação…

Agora, o segundo plano – O SNS propriamente dito.
A ideia global é a de que a resposta do SNS superou todas as expectativas – revelou-se capaz de multiplicar a sua capacidade em cuidados intensivos, demonstrou capacidade de internamento simultâneo de milhares de infetados e, uma área oculta sobre a qual, aliás, já escrevi em artigo na edição de março do “Le Monde Diplomatique”, os centros de saúde acompanharam as cerca de 800 mil pessoas que estiveram confinadas em casa, com Covid-19. Bem como a identificação/rastreio das cadeias epidemiológicas. Quando se diz que as portas dos centros de saúde fecharam, é verdade que estiveram fortemente condicionadas, nomeadamente nos primeiros meses da pandemia e até ao verão. Porquê? Porque uma sala de espera seria pólvora em termos de contagiosidade. Então, o que mais aconteceu? Houve um crescimento brutal do número de “consultas indiretas” – por telefone e email (entre 2019 e 2020 passaram de pouco mais de 9 milhões para 18,5 milhões) e a consequente descida das consultas presenciais (de 20,5 milhões para 12,7 milhões). O que nos leva a afirmar que o somatório de consultas até aumentou em 2020, quando comparado com 2019 – mais 1,4 milhões do total de consultas. Portanto, as pessoas não ficaram abandonadas, apenas entregues à sua sorte
É claro que houve perdas – uma “consulta não presencial” não é tão rica como a presencial. Mas aprendeu-se que nem tudo obriga a que as pessoas estejam na presença física do próprio médico. Se ele pedir análises, não é necessário que o doente vá a uma consulta presencial para mostrar os resultados. Isso pode faz-se por email ou telefone. O cidadão não precisa de perder o seu tempo, ocupar a vez de outros, faltar ao emprego, deslocar-se e encher uma sala de espera. Nunca deixando de ser verdade que há múltiplas situações onde o contacto presencial é imprescindível, quer para a observação física do doente (palpar, ver, mexer…), quer para se manterem conversas que são precarizadas se não houver encontro face a face. Há agora que reajustar-se a utilização da consulta presencial e da consulta não presencial para o normal acompanhamento das pessoas no seu dia-a-dia.
Em síntese, reafirmo que o comportamento global do SNS me surpreendeu ao saber reinventar-se. Se me dissessem no dia 1 de março 2020 que iria haver este número de doentes em cuidados intensivos, em internamento, de doentes em vigilância e esta imensidão de pessoas a serem vacinadas diariamente, eu teria dito: não! O SNS não aguenta, rebenta. E o que é verdade é que ele, mais que nunca, está por aí.
Outra aprendizagem a reter foi a de que o hiper centralismo da gestão do Ministério da Saúde em relação às diversas unidades de saúde é nefasto. No que tradicionalmente era toda uma cadeia de comando-controlo, um modelo burocrático, a pandemia obrigou a serem concedidos graus de liberdade às estruturas locais e regionais. Aprendeu-se, quero crer, que uma gestão desconcentrada faz todo o sentido para se responder adequadamente aos problemas regionais/locais.
Uma nota breve: não esqueço que um ex-Secretário de Estado dizia nas TV’s, nos tempos de Adalberto Campos Fernandes e Mário Centeno: “Eu não consigo gerir o IPO (Instituto Português de Oncologia) desta forma, porque se uma enfermeira ou uma auxiliar mete uma licença de parto, não consigo contratar ninguém para a substituir, porque isto vai por aí acima até a secretária do ministro das finanças o que demora 4 a 5 meses a ser concedido. Eu não consigo gerir esta casa assim!”. E acrescentava: “Nós temos mais autonomia para pagar milhares muito largos de dólares, ou euros, por um medicamento inovador, do que para fazer a contratação de um profissional”. Portanto, este era o quadro de hiper centralismo reinante no Ministério da Saúde. Fica então como aprendizagem que, se não tivesse havido desconcentração da decisão, o SNS teria estourado.
Percebeu-se, também, o papel fundamental da Saúde Pública, aqui entendida como especialidade médica e área de trabalho profissional, ou seja, que são absolutamente insuficientes os médicos, enfermeiros, técnicos sanitários e o conjunto de outros profissionais que formam o observatório de saúde regional que identifica o que está a acontecer em termos de saúde/doença ao nível das comunidades locais/regionais. E que, num contexto de pandemia, asseguram as tarefas de identificação e vigilância das cadeias de contaminação. Neste momento, não temos mais que 400 médicos de saúde pública e a dimensão dos departamentos de saúde pública terá que ser seriamente ampliada. Sendo uma necessidade percebida antes, ela gora ficou gritantemente clara. E, sobretudo, na época de janeiro e fevereiro, nomeadamente em Lisboa e Vale do Tejo, quando se perderam as cadeias epidemiológicas e a transmissão comunitária cresceu por não haver capacidade instalada para se estar em cima de todos os contactos e fazer o rastreio de base populacional. Esta é, também, outra aprendizagem que penso ser importante.
E aprendeu-se, ainda, que os limites orçamentais a que estávamos habituados, nos momentos críticos, até podem ser desbloqueados. Porque agora tem havido capacidade de desbloqueamento orçamental e, portanto, há opções que têm que se tomar. Assegurar o bom estado de saúde dos portugueses não é uma despesa, é um investimento. E a pandemia obrigou a que isso fosse melhor percebido. Mas para o futuro não esqueçamos que somos, de entre os países da Europa, dos que têm mais baixo orçamento público para a saúde, menos de 6% do PIB, bastante abaixo dos valores médios da OCDE; isto onde os cidadãos pagam diretamente do seu bolso mais para terem cuidados de saúde. E num dos países, também, com vencimentos mais baixos.
Há aqui qualquer coisa que, seguramente, tem que muito seriamente ser equacionada.
Acreditas que, diante da evidente vantagem em ter um sistema público e universal de saúde para se evitar uma tragédia humanitária ainda maior, haverá um fortalecimento do SNS e maior valorização de seus profissionais?
Penso que a valorização dos profissionais é uma questão básica e urgente. Uma valorização dos profissionais que efetivamente trabalham. Porque não basta estar-se no SNS. É preciso estar e trabalhar, trabalhar mesmo no SNS. A maioria dos profissionais até trabalha arduamente; mas com eles coexistem um conjunto de vedetas e personalidades de proa cujo contributo para o SNS, enfim… São do SNS, mas… fico-me por aqui.
E, portanto, há aqui aspetos que reputo da maior importância.
O primeiro é que, com o surgimento das “novas modalidades” de contratação pública, com a introdução dos contratos individuais de trabalho e com a precariedade de muitos dos que exercem no SNS, o que aconteceu, foi que se destruíram as carreiras profissionais. E esta questão das carreiras não pode ter como objetivo único conferir títulos mais ou menos pomposos. Tem, isso si, a ver com o reconhecimento interpares da diferenciação técnico-científica e portanto, com a construção de uma cadeia hierárquica baseada no conhecimento e no bom desempenho profissional, com competências reconhecidas. E isso foi destruído. O sentido do coletivo dos serviços, pela instabilidade dos próprios vínculos laborais, perdeu-se em larga escala. Costumo dizer que muitos dos serviços, hoje, são coletivos de solitários. Quero com isto dizer que se perdeu muito a dinâmica da aprendizagem cruzada e a discussão de resultados interpares. Este é, portanto, um aspeto fundamental, não podendo o desejado reequacionar das cadeiras cingir-se, apenas e só, à discussão de graus, categorias e regimes remuneratórios. Falar-se de vencimentos é mandatório, mas terá que falar-se, também, de como repor hierarquias técnico-científicas de reconhecido mérito.
O segundo aspeto é que a governação abandonou a ideia da dedicação exclusiva, da dedicação plena dos profissionais. É difícil eu dar um alto rendimento se de manhã exerço num sítio e da parte da tarde exerço noutro. Aliás, temos a prática de alguns hospitais privados que, neste momento, quando contratam pessoal a tempo inteiro, exigem esse pessoal em regime exclusividade. Diziam-me, alguns, que esta é uma questão ideológica. Ao que respondo que até podendo sê-lo, é primordialmente uma questão de organização e capacitação dos serviços para terem as melhores respostas por parte dos seus profissionais. Penso, portanto, que a valorização dos profissionais é uma questão importante e acrescento: o salário dos profissionais é, neste momento, uma questão fulcral. Não se trata de pedir mundos e fundos, mas trata-se, no essencial, de perceber que há uma subvalorização do seu trabalho. Pessoalmente, não me lastimo com a minha situação atual. Com mais de 40 anos de exercício atingi o topo da carreira, com um regime de 40 horas semanais. Mas se eu entrasse agora na profissão, como especialista, queixar-me-ia seriamente, porque teria alguma dificuldade em gerir as minhas necessidades pouco para além do básico.
E isto entronca com outro ponto que, acho, tem algum interesse. Sabes que Lisboa e Vale do Tejo (LVT) vive um problema que muitos julgam ter a mesma dimensão a nível nacional? Sim. O da falta de médicos de família. É um problema nacional, certo. Mas, em LVT constitui um enormíssimo problema. Os doentes sem médico de família em LVT ultrapassam o meio milhão e no resto do país são pouco menos de 250.000. Mas como os noticiários e os jornais estão maioritariamente sediados em Lisboa, tudo o que em LVT acontece, parece que todo o país padece com igual intensidade. Mas não é verdade. A história é que LVT tem esta carência de médicos de família por uma arrastada e total falta de capacidade de planeamento e gestão de recursos humanos, de previsão e antecipação de necessidades por parte da administração da saúde. Ora aqui temos mais uma forma de estragar o SNS.
Outro aspeto relacionado com este, que penso que vale a pena dizer é: como tudo é feito na lógica do que parece, e não numa lógica estruturada e fundamentada de que deve mesmo ser feito, de há uns anos a esta parte a Administração Central do Sistema de Saúde, que é quem decide o número de vagas que abrem nas diversas regiões, define que a grande maioria das vagas, mais de 70%, são abertas em LVT. Então, a maioria dos jovens médicos que fizeram a sua formação como especialistas em Guimarães, Viseu, Coimbra, Porto, etc., vêm como única oferta de trabalho Lisboa e Vale do Tejo. E ao serem confrontadas com vagas em Cascais, Sintra, Vila Franca, Almada… vão dizer: “Eh pá, eu não posso… então vou ganhar €1.400 por mês, vou ter que arrendar habitação aos preços praticados em Lisboa, e vou deixar a mulher e os filhos lá em cima?”. Isto quando já contam idade a rondar os 30 anos. Como agravante, estes concursos só abrem 10 ou 11 meses depois de eles já terem a especialidade e de terem estado esses meses a trabalhar no local de estágio ainda com o vencimento de internos. O que é que acontece, então? Aparece a Trofa Saúde, aparece o Hospital da CUF e propõem: “Eh pá, você vai trabalhar lá no nosso hospital e nós até lhe damos mais €100 ou €500 por mês… E não tem urgências noturnas”. Aí, o jovem especialista pergunta-se: será mesmo caso para largar tudo, a família incluída, e ir para LVT onde ganharei menos, até?
Como resultado, não aceita essa vaga em Lisboa e sai do SNS. O que não aconteceria se houvesse vagas em regiões do país mais próximas do seu local de formação e onde também há carência destes profissionais.
E logo vêm as notícias: “uma elevada percentagem das vagas postas a concurso não foram ocupadas”. E os inevitáveis comentários: “malandros! Eles não querem é ir para o interior”.
Mas, espera lá!
Trata-se da colocação em LVT!
Outro ponto: a falta de programação de recursos humanos revelou outra questão grave.
Os numerus clausus para entrada nas Faculdades de Medicina, instituídos nos 70 e nunca descontinuados geraram, também eles, sérios problemas de défice de profissionais. No meu ano (1973) entraram quinhentos e poucos alunos no curso de Medicina, em Coimbra, e saíram seis anos após 350 profissionais que entraram todos para o SNS. Deu-se, então, uma capacidade brutal de expansão ao SNS. Mas, poucos anos volvidos, vieram os númerus clausus e Coimbra passou dos 500 e tal para os 80. Resultado: atualmente regista-se um buraco geracional entre os 35 e os 50 anos. Portanto, o mundo hospitalar e da medicina familiar está com um gravíssimo problema: tem gente plena de força, mas ainda em fase de maturação e diferenciação, e um setor envelhecido já em final de carreira. Há um “buraco” geracional. E este é outro problema sério que temos no nosso SNS.
Tudo isto num quadro em que Portugal apresenta o rácio mais baixo de enfermeiros por habitantes na União Europeia e, também, a célebre “não-carreira” dos Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica. Uma carreira sistematicamente adiada, que estará agora em discussão, onde ainda recentemente foi preconizado que quem entrasse, agora, receberia exatamente o mesmo que quem estava há já 20 anos em funções… sendo que ganhavam sempre pouco.
Estão todos a fugir para a Alemanha e para o Reino Unido, os enfermeiros e alguns médicos também…
Exatamente! Nos médicos também tens fuga até porque as condições do exercício profissional em muitos desses países, nomeadamente Espanha, Inglaterra, Suíça, França… são bastante melhores. Eu vi, já depois do Brexit, contratos que, se eu tivesse 30 anos, teria pensado duas vezes. Mas pronto, acontece com médicos, mas com enfermeiros ainda é mais grave. O que temos é a incapacidade, por parte de quem gere o SNS, de criar as condições para manter aqueles profissionais que nele foram formados.
Outra questão, já antes falada, é a acusação de os médicos não quererem ir para o interior. Está muito espalhada, por aí. Parece até que os engenheiros, os arquitetos, os advogados, os juízes, os empresários estão todos mortinhos por irem para o interior…
Mas a realidade que não é referida é que, como já referi, o interior tem menos problemas no que respeita à dotação de médicos de medicina familiar (no meio hospitalar já não é assim), do que LVT. Sintra é o pior concelho em termos do rácio de médicos de família por habitante. No fundo, convivemos credulamente com alguns mitos que são construídos e que não refletem a verdadeira imagem da Saúde no país como um todo.
O outro problema é que um médico de uma especialidade hospitalar que exija a utilização de elevados níveis de tecnologia, ao sair de Coimbra, Lisboa ou Porto vai perder o acesso a essa capacidade tecnológica porque não possui igual apetrechamento nos outros locais. E isto também conta para quem tenha algum brio profissional e queira estar no sítio “onde as coisas acontecem”.
Tudo o referido obrigará, então, a uma reflexão estratégica da política de recursos humanos – à definição de uma “Política das Profissões”, tal como preconiza uma referência do bem pensar as “coisas da Saúde“ e que se chama Constantino Sakellarides.
Esta é uma ideia sábia que ele nos vem dizendo repetidamente desde 2000, mas tantos são os que continuam a teimar em não o querer ouvir…