Parte 2 de 4
(Entrevista conduzida por André Leal com perguntas formuladas pela Ana Luísa Martins)
Passados 47 anos da Revolução e 41 anos da criação do SNS, qual papel do SNS na defesa e consolidação de uma democracia real para a maioria da população?
Há quem tente convencer-nos que a democracia é pouco mais que a liberdade de expressão e o direito de votarmos cada quatro anos. Mas, como todos concordaremos na esquerda que é esquerda, ela terá que ser muito mais que isso. É o dia-a-dia de cidadãos protegidos por um Estado Social robusto, é a capacidade de não deixar ninguém para trás. E é assim que, nos níveis de desenvolvimento como os do espaço em que nos inserimos, o sistema de saúde se constitui num componente estruturante para a democracia. Onde as pessoas sabem que amanhã encontrarão as respostas adequadas para os seus contratempos de vida. Porque será sempre curta uma democracia que, mesmo tendo um parlamento, depois esbarra com a inexistência de serviços públicos robustos e com a inexistência de um Estado Social qualificado. Ela terá que ser, portanto, o uso pleno dos nossos direitos e a confiança de que temos instituições que funcionam, que servem todo um povo numa lógica em que não haverá excluídos. E o SNS é exatamente um dos pontos essenciais dessa não exclusão.
A paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação, cito o Sérgio Godinho, são de facto a base da democracia, não podendo esta ser circunscrita ao voto. O voto que será sempre fulcral, de acordo, mas a par da garantia daqueles pontos basilares. Portanto, o sentido do SNS não pode assentar em serviços que servem para multiplicar dividendos para os acionistas, onde se encaram os cidadãos como “clientes”, mas antes para acolher e tratar os cidadãos com necessidades em saúde. E o que seriam dividendos nos privados, só pode significar reinvestimento no SNS. Não pode servir, portanto, para encher os bolsos dos acionistas; neste caso, os acionistas serão todos os portugueses que receberão os “dividendos” traduzidos nas melhorias da capacidade de resposta do SNS.
O SNS é, assim, uma pedra angular da democracia – porque é universal, geral e gratuito. Isto é que é, de facto, o exercício da democracia. Como a escola pública é uma parte fundamental dessa democracia e como a Segurança Social deveria ser uma parte fundamental do apoio a quem carece. Eu diria que o sentido de democracia não fica estritamente na formalidade importantíssima das escolhas populares – eleições – mas, isso sim, também na existência de ensino, saúde, emprego, habitação, justiça e, já agora, ecologia e proteção ambiental.
Ao longo desses 41 anos, quais os retrocessos sofridos no SNS? Acreditas que seu caráter público esteja ameaçado?
A ameaça do caráter público SNS esteve sempre presente, mesmo de formas muitas vezes muito disfarçadas. Temos o lobbying e temos os think tanks na área da saúde (os anglicismos para mim têm habitualmente um significado suspeito…) e que a cada momento estão a tentar engendrar novas formas de retirar ao SNS uma parte da sua produção, para eles a captarem no momento seguinte, maximizando os resultados dos capitais investidos. E a primeira Lei de Bases da Saúde (LBS) feita logo no começo do SNS era uma LBS perversa – (A lei da criação do SNS data de 1978 e esta primeira LBS é de 1990, já em tempos de governo do Dr. Cavaco) e dizia que os serviços de saúde públicos e privados deveriam operar “em concorrência”. Já a atual, a aprovada em 2019, diz que o SNS poderá ser complementado, em situações de necessidade devidamente documentadas, justificadas e por tempo limitado, pela Saúde privada. O que se viveu durante todos aqueles anos foi o domínio da lógica de concorrência. O que foi sendo travado pela ação popular, por um lado, mas também por grupos de profissionais de saúde que se encarregaram de defender o que foi sendo possível. E atenção que, quando digo profissionais de saúde, não me refiro apenas a médicos, mas aos profissionais de saúde no seu todo. Convivo muito mal com essa ideia de alguns que tendem a subestimar os restantes profissionais de saúde.
Penso que o aparecimento desta nova LBS veio retirar algum campo porque, de facto, estatuiu essa limitação à expansão da saúde privada à custa do SNS. Mas também é verdade que a Lei foi aprovada há mais de um ano e meio e, fruto da pandemia, mas também de inações governamentais, ainda aguarda por ser regulamentada. Mesmo que a Ministra da saúde já tenha afirmado que o imprescindível Estatuto do SNS verá a luz do dia no final do primeiro semestre deste ano. A ver vamos… Em todo o caso, a nova LBS é uma vitória na afirmação dos princípios do que deve ser um SNS no caminho do que o entendemos, ou seja, como uma conquista democrática. Ninguém perseguirá a privada. O que é dito é “nós, SNS, garantimos o acesso à saúde dos portugueses, que é a parte fundamental. A outra parte, se quiser fazer negócio que opte por voluntariamente excluir-se do SNS… fazem favor!”. Não há um processo de perseguição ao setor privado; o que existe é o sentido de que a globalidade dos melhores cuidados tem que ser prestada pelos serviços públicos de saúde.
Se tu me perguntas que a saúde pública está ameaçada, acho que sim. Todas as conquistas democráticas estão sempre sob ameaça. Mas a relação de forças, hoje, até por causa da pandemia, é mais favorável ao SNS. As pessoas perceberam que quem internou, quem aumentou a capacidade de resposta nos cuidados intensivos, quem tratou os doentes que, não tendo sido internados, mantiveram apoio em isolamento profilático, quem está a vacinar, é e foi sempre o SNS. Temos aqueles aspectos simbólicos do Hospital da Luz, com a vinda dos médicos alemães, mas estamos aqui a falar aqui de um nicho de camas, não mais que meia-dúzia, ainda por cima com cuidados prestados também por médicos “emprestados” pelos hospitais públicos, que tiveram uma imensa visibilidade mediática, e que ainda estamos para saber a que custo… é um segredo que, espero, um dia destes será revelado.
Não deixa de ser relevante que o façanhudo André Ventura sobre os próprios serviços de saúde pouco ou nada saiba dizer. Não tem uma ideia. Ou por outra: a única ideia é privatizar tudo. Já a Iniciativa Liberal é muito mais focada. E portanto, quando falamos de André Ventura, estamos a falar dum mundo panfletário, mesmo que com perigos reais. Mas sem uma ideia sobre o modo como fazer.
Já a Iniciativa Liberal é outra coisa. Sabe o que quer, tem agenda estruturada e tem parceiros nos grupos privados.
Mas a ameaça vem sobretudo do PSD que, globalmente, não está, nunca esteve, com o SNS público, universal, geral e (tendencialmente) gratuito consignado na Constituição. É um ato de hipocrisia afirmarem que defendem o SNS. Até poderá ter havido bons exemplos de gente sua que o defendia o SNS: esse é o caso de Paulo Mendo ou do Dr. Albino Aroso. Mas estamos a falar de um número muito limitado de personalidades, não estamos a falar do comum dos dirigentes daquele partido. O PSD se ao seu tempo votou contra a criação do SNS, é responsável pela primeira Lei de bases que já acima referenciei e votou contra a atual. E tem os anos de governação que conhecemos.
Já quanto ao PS as questões são mais complexas. Há todo o tipo de posições. Temos, desde logo, as posições de António Arnaut e de toda, tantos militantes e simpatizantes que o secundam, mas temos, também, as posições, por exemplo, de Óscar Gaspar que foi secretário de estado da saúde num governo PS e que é o atual Presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada e Vice-Presidente do Conselho Geral da CIP (Confederação Empresarial de Portugal), temos Germano de Sousa, que é o dono de uma das maiores cadeias de laboratórios de análises clínicas que estão a lucrar milhões com os testes Rt-PCR e que se manifestou abertamente contra a nova Lei de Bases da Saúde, temos as declarações do Dr. Adalberto Campos Fernandes que tem demonstrado sempre grande abertura aos privados
E temos, como já disse, alguns dirigentes e uma base muito relevante de militantes que se mantêm fieis ao legado de António Arnaut.
Tive, de resto, oportunidade de acompanhar muito de perto todo o processo de “gestação” desta nova Lei de Bases.
Lembrar, aqui, que o processo que conduziu à revogação da anterior e à consagração da atual se deveu a uma iniciativa conjunta de António Arnaut e do João Semedo, processo este que acompanhei ao detalhe, até por ser conterrâneo de Arnaut e com ele ter mantido contactos, mas, sobretudo, com o João. Porque amigos inseparáveis e com trajeto político comum e continuado logo desde os primeiros dias de maio de 1974.

E em todo esse processo não me passaram ao lado os sucessivos posicionamentos de muitos que nem sempre tiveram eco na opinião pública.
Já à esquerda do PS o SNS público é ponto consensual. As eventuais discordâncias não põem em causa a sua essência pública e são passíveis do atingimento de consenso.
Portanto, perguntaste se há riscos e perigos? Há. A questão a saber é, nos momentos decisivos, o que esperar do Partido Socialista – se assumirá a defesa genuína do que ele próprio criou através de António Arnaut, ou se os setores que nele se incluem e mais alinhados com os “valores do mercado” fazem perigar esses valores.
Como já disse, isto esteve muito presente na preparação desta nova LBS. O debate interno foi quente, mas, felizmente, prevaleceram os valores da defesa do SNS.
Penso que a própria Marisa Matias, no debate presidencial com o candidato da Iniciativa Liberal, referiu que o lugar do privado na Saúde seria muito reduzido, caso a norma constitucional fosse cumprida à risca…
Exatamente! À privada lucrativa incumbiria, então, a resposta à iniciativa individual dos que por via de seguros de saúde ou do pagamento direto e integral voluntariamente prescindissem dos serviços do SNS, aos contratos temporários devida e publicamente justificados na suplementação dos cuidados que a rede pública se revelasse incapaz de assegurar, à cirurgia estética não reconstrutiva (de “embelezamento”) e pouco mais…
(Continua)