Parte 1 de 4
(Entrevista conduzida por André Leal com perguntas formuladas pela Ana Luísa Martins)
António Rodrigues, médico de família aposentado desde 1 de Abril de 2020, trabalhava na Unidade de Saúde Familiar de Celas, Coimbra. Tirou o curso de Medicina em Coimbra e iniciou no trabalho como profissional em 1980. Passou por múltiplos sítios até que voltou definitivamente para Coimbra. Fez parte dos corpos gerentes do Sindicato dos Médicos da Zona Centro, ligado à FNAM (Federação Nacional dos Médicos), pertenceu ao Conselho Regional do Centro da Ordem dos Médicos nos anos 90 e foi dirigente da Associação Portuguesa dos Médicos de Medicina Geral e Familiar.
Fez parte da Unidade de Missão para os Cuidados de Saúde Primários, de onde saiu numa demissão em bloco, em 2009, quando se apercebeu de erros variados na condução da reforma proposta e que, após essa demissão, ficou estagnada até hoje. Em termos políticos foi ativista do Movimento Democrático Português antes do 25 de abril e, imediatamente após a revolução, foi membro da Comissão Central da União dos Estudantes Comunistas. A sua militância andou sempre em torno de questões de saúde e não na militância ativa no Partido Comunista Português. Em 1999 fez parte do Movimento da Renovação Comunista, após o qual entrou para o Bloco de Esquerda, em 2011, e por aí está, fundamentalmente, a investir nas questões da saúde.

António Arnaut referia-se ao SNS como “um cravo plantado no chão de Portugal”, como filho primogénito da Revolução. Que relação tem a construção do SNS e a Revolução do Cravos?
A situação de Portugal quando chegamos ao 25 de Abril era, em termos de saúde, equivalente à de um país de terceiro mundo profundo. Era verdade que, pouco tempo antes da revolução, duas pessoas marcaram alguma inflexão. Estas pessoas foram o Arnaldo Sampaio, o pai de Jorge Sampaio, e o Ricardo Jorge. Eles iniciaram algumas mudanças e surgiu um movimento, dinamizado por um conjunto de médicos democratas, alguns, e muito variados: Miller Guerra, Mário Mendes, que foi Secretário de Estado do Ministro Arnaut, António Galhordas, entre tantos outros. Todos eles colaboraram na elaboração do chamado Relatório das Carreiras Médicas. Isto porque antes não havia carreiras nem havia praticamente hospitais públicos. Seriam apenas 3 e o resto eram Hospitais das Misericórdias. O trabalho médico dividia-se entre a cobrança à peça e o misericordioso.
Por outro lado, numa fase já mais próxima do 25 de Abril, foi criado o serviço das Caixas de Previdência, ao qual as pessoas que estavam empregadas tinham acesso, mas que era algo em que eram vistos 10 doentes por hora. Ou seja, era um “vê se te avias” e eram de facto instituições muito precárias.
Gonçalves Ferreira e Arnaldo Sampaio impulsionaram a criação dos centros de saúde de primeira geração, essencialmente vocacionados para a parte preventiva que até tinham um sector chamado “lactário”, que tinha a ver com a questão do aleitamento materno, de acompanhamento da gravidez e das crianças. Mas era uma coisa de reduzida dimensão, apesar de ser uma boa intenção.
Chegamos ao 25 de Abril com uma situação sanitária muito complicada, que se traduzia numa Taxa de Mortalidade Infantil completamente na cauda e distanciada do resto da Europa, e também numa esperança de vida muito baixa. Eram, portanto, indicadores de saúde que nos deixavam ficar mal em todo lado.
E é aí que, em 1978, nasce o documento do SNS, que na verdade, ao contrário de algumas versões mais recentes, foi um documento votado contra pelo PSD e pelo CDS, que fique bem registado na memória de todos. A partir daí vai-se construindo todo um processo com a passagem dos Hospitais da Misericórdia para a gestão pública do Serviço Nacional de Saúde, com a dinamização dos Centros de Saúde e a sua multiplicação e, fundamental, o Serviço Médico à Periferia, que foi uma parte importante deste processo e que consistia nos médicos, no terceiro ano após a licenciatura, irem para a periferia durante um ano. Um bom exemplo desta importância e do que era a realidade na altura é o de um colega e amigo meu que, quando estava no Sátão, Distrito de Viseu, atendeu uma senhora uma idosa que foi a uma consulta e, quando a senhora chegou, estabeleceu-se um silêncio terrível. Então o médico perguntou: “O que traz por cá? Qual é o seu problema? Quais são as suas queixas?” e ela diz: “Sôtor, eu vim ver o que era um Médico, que eu nunca tinha visto nenhum”. Nesses anos andávamos à ordem dos 4.000 médicos a nível nacional, hoje estamos a falar de valores muito acima dos 40.000, sendo que 25.000 estão no SNS e os outros 15.000 estão entre os reformados e aqueles que estão a tempo inteiro a trabalhar na privada. Mas estamos a falar de diferenças abismais entre os valores anteriores ao 25 de Abril e os de hoje.
Claro que este processo não está isento de erros, mas também os caminhos fazem-se caminhando. Há erros que eram inevitáveis e há erros que eram antecipáveis. E o SNS é rico em erros antecipáveis. E estes mais não são que pequenos furos feitos no barco que é o SNS, para por aí ir entrando a água que o vai afundando, e que são perpetrados por aqueles que, defendendo o SNS publicamente, no fundo no fundo são contra ele. Isto porque a pujança que o próprio SNS demonstrou junto das populações impede que os ataques sejam mais diretos e menos espaçados no tempo.
Ainda assim a verdade é de que o SNS foi-se construindo, foi robustecendo, foi aumentando cada vez mais sua capacidade de resposta, mesmo que haja uma coisa espantosa: se formos ver os elencos ministeriais desde a fundação em 1978, nós não temos políticos verdadeiramente empenhados de corpo inteiro no SNS. Pelo contrário, foi quase sempre ocupado por um conjunto de pessoas com grande permeabilidade a soluções fora do SNS.
E aí surge o neologismo do Sistema Nacional de Saúde, versus Serviço Nacional de Saúde em que, por um lado, se pretende colocar um bocado nas mãos dos privados mas, quando a vida aperta, toda a gente diz defender o SNS. Esta ideia do Sistema Nacional de Saúde, que visa apenas a maior participação dos privados, naquilo que é um serviço público, universal e gratuito, ou pelo menos tendencialmente gratuito depois da revisão constitucional para que se pudessem implementar as taxas moderadoras, que representam alguma regressão no princípio da gratuitidade e que ainda continuam por aí. Por isso o que nós temos é fruto duma gestão que não foi feita por verdadeiros devotos do SNS.
Não podemos esquecer que estamos em 1978 quando é formado o SNS e que, quando este ainda dava os seus primeiros passos, o mundo passa a ser dominado por duas pessoas chamadas Margaret Thatcher e Ronald Reagan. E aí começou a lógica do mercado omnipresente, do produtivismo, da privatização, do cidadão-cliente, etc. O SNS nasce e, de imediato na sua infância, entra a lógica da “empresarialização” dos Serviços de Saúde, o aparecimento dos Hospitais S.A., agora EPE. Portanto há todo um conjunto de coisas que não têm a ver ainda e só com a Privada, mas sim com a permeabilidade que existiu na gestão do SNS que eram estranhas aos seus princípios.
Apesar de tudo o “monstro” SNS “cresceu”. O dito “monstro” está aí. E a melhor demonstração de que este “monstro” (para a direita) de facto existe é esta pandemia. Demonstrou tudo o que se suspeitava que não seria capaz de fazer. Em situação já de grande debilidade, por subfinanciamento, por subdotação em recursos humanos, por falta de reformas estruturais, por exemplo, nos regimes de trabalho, nos modelos de gestão, no centralismo brutal que existe por parte do Ministério da Saúde (e da administração pública no seu todo que é uma administração hiper centralista), apesar de tudo isto, conseguiu reinventar formas de intervir todos os dias e de responder às questões da pandemia. E portanto esta é a história muito abreviada do SNS. Deixo apenas alguns dados que demonstram a diferença enorme entre o antes e após 25 de Abril.
Apenas deixo mais uma nota para dizer que somos um dos países da Europa com maior longevidade mas, se formos ver o estado de saúde das pessoas com 65 anos e mais, somos daqueles em que temos menos qualidade de vida em termos de saúde desde aí até ao fim da vida. O que significa que o conjunto das condicionantes extra saúde, o que se chama os determinantes sociais de saúde (emprego, habitação, etc.), não estão garantidas como estão noutros sítios.

Pensando no processo de luta social e democrática que propiciou o nascimento do SNS, podemos dizer que ele é ao mesmo tempo produto de luta contra a ditadura fascista e instrumento de defesa da democracia para toda a gente. Na tua avaliação, de que forma o discurso de ódio e antidemocrático da atualidade podem atingir o SNS?
Eu penso que a questão do SNS começou muito antes. Já havia um minar do SNS antes da disseminação deste discurso de ódio atual.
Eu costumo dizer a brincar que só conheci em Portugal uma pessoa que era contra o SNS, chamado António Gentil Martins e que foi bastonário da Ordem dos Médicos nos tempos quentes (1977 a 1986). De resto toda a gente é a favor do SNS… Só que simplesmente não estamos a falar todos da mesma coisa. Pois, para alguns, o SNS ou é um serviço residual para os pobres, porque os outros têm seguro de saúde, outros subsistemas ou outras alternativas, ou é qualquer coisa como o estado enquanto pagante serviços prestados por instituições privadas que lucram à custa disso. Ora isso de que estão a falar não é o Serviço Nacional de Saúde da Constituição. E aqui o Dr. Marcelo também podia dizer alguma coisa sobre isto, porque ele também tem algumas derivas a este nível. Na última discussão e debate sobre a lei de bases da saúde, que foi aprovada já há mais de um ano e meio, o Dr. Marcelo na fase preliminar da discussão teve posições complicadas… Porque se a Lei de Bases da Saúde anterior, que era uma péssima lei de bases da Saúde feita no tempo do PSD, foi votada só pelo PSD e CDS, já nesta o Dr. Marcelo exigia um acordo mais alargado que chegasse também ao PSD.
O SNS tem hoje problemas seríssimos no seu trabalho: mais de 40% do orçamento do serviço nacional de saúde é destinado a pagamento de atos à privada, seja pela recuperação das listas de espera, seja pelo pagamento do negócio dos exames auxiliares de diagnóstico, ou das chamadas convenções. Há um esvaziamento direto do orçamento do SNS para pagar prestações a privados que deveriam estar dentro do SNS, pois este tem capacidade para as absorver. É uma questão de decisão política.
Tudo isto se alicerça numa noção, difundida pelo Dr. Bagão Félix, de que o que interessa é cuidar dos portugueses, não interessa se pelo privado, se pelo público. Mas é uma noção que não vem acompanhada com a explicação da estrutura de custos, que terá que incluir a componente do lucro que os privados teriam que ter, e quanto é que isso iria custar. E com esta ideia vem outra que é a da “superioridade da gestão privada sobre a gestão pública”. E essa é uma tese que ainda está por provar, nomeadamente depois do que vimos acontecer na Banca, TAP, Groundforce, etc.. Além disso, a saúde privada tem outra “qualidade” que é, quando a coisa aperta, pôr-se fora como vimos com o Covid. E também não conheço nenhum hospital privado onde os grandes acidentados sejam tratados, onde se façam transplantes cardíacos e transplantes hepáticos, onde se trate SIDA, cancro… pode haver, residualmente, um ou outro, mas é apenas um cantinho. Não é o tratamento de toda uma população. Portanto, os privados servem para aquelas coisas comuns, que exigem uma estrutura de custos baixinha, mas onde que se cobra bem.