Após sete anos, foi concluída a instrução do mega-processo “Operação Marquês”. Muitas das acusações a José Sócrates caíram por terra, por falta de provas ou por terem prescrito, mesmo havendo provas. Apesar disso, o ex-primeiro-ministro irá ser julgado por crimes passíveis de resultar numa pena de mais de 10 anos. Ao contrário do que seria de esperar, este fato inédito não tem sido o centro do debate público. Em vez disso, comentadores e atores políticos centram-se nas acusações que caíram por terra. Uma onda de indignação foi cuidadosamente orquestrada. Com o sangue a ferver e genuína indignação, muitos seguem o tsunami. Outros tentam surfá-lo, por oportunismo. Mas onde nos leva esta onda, arquitetada nos corredores do Ministério Público (MP), nas cúpulas da Comunicação Social e nas colunas de opinião dos comentadores profissionais?
Uma indignação seletiva e construída
A onda de raiva e frustração com a decisão instrutória de Ivo Rosa já vinha sendo preparada há muito, pela comunicação social, pela direita e, sobretudo, pela extrema-direita. Mais ainda: a forma escolhida para construir a própria acusação parecia ter como principal objetivo gerar esta onda. É certo que não faltam motivos para a raiva coletiva. Desde o estilo de vida de José Sócrates, residindo luxuosamente em Paris à custa de dinheiros obscuros, até à duração do processo, passando pelos procedimentos tortuosos da Justiça, o terreno é fértil para indignações. Porém, outros aspetos da operação Marquês mereceriam crítica. É o caso da manipulação da opinião pública através das fugas de informação nos tribunais. Ou da falta de capacidade (ou vontade!) do MP em articular uma acusação eficiente. Para não falar da bizarria que foi inicialmente ter sido indicado para dirigir a instrução um Juiz totalmente parcial, Carlos Alexandre, que comentava o processo nos jornais, evitando-se para tal o sorteio obrigatório de juízes. No entanto, a indignação que se expressa nos meios de comunicação e nas redes sociais é muito parcial: poupa os MP, o DCIAP e a máquina obscura do sistema judicial, para apontar o dedo a Ivo Rosa e a Sócrates.
Sobre os atropelos da Operação Marquês que não fazem manchetes, já tem escrito, e bem, António Garcia Pereira. Num artigo sucinto mas certeiro, o advogado conclui: “É para mim óbvio que se o dia de ontem [ 9 de abril, quando foi pública e decisão instrutória ] foi negro para a Justiça, tal se deveu aos justiceiros, que, esses sim, se lhes restasse um pingo de vergonha na cara, se deveriam ter demitido ou, pelo menos, reconhecido, com humildade, onde é que a sua postura e os seus métodos conduziram…”.
Apesar da forma como aparentemente a acusação se auto-sabotou, a indignação que se agita e já deu azo a uma petição que exige o afastamento de Ivo Rosa e à convocação de várias manifestações, não vai contra esse lado obscuro e justiceiro do aparelho de estado. Pelo contrário, todas estas iniciativas convergem com a agenda que o MP, em articulação com parte da comunicação social e da direita, tem vindo a promover. E que agenda é esta? Uma agenda justiceira, que procura culpar as instituições da democracia representativa – os partidos, o parlamento e as eleições – pela corrupção, omitindo o carácter sistémico da corrupção, como componente do capitalismo. Como salvaguarda da ética e moral públicas são apresentados os mecanismos não eleitos e não escrutináveis do aparelho de estado: o MP, as Polícias e as prisões. E são insinuados homens providenciais, que encarnariam essa redenção justiceira, como o juiz favorito dos média, Carlos Alexandre.
Para a esquerda, os movimentos sociais e quem verdadeiramente luta contra a corrupção, é essencial desmascarar esta agenda. Porque ela não é uma agenda contra a corrupção, é uma agenda pela ainda maior degradação da justiça e das garantias democrática. Baseia-se numa narrativa que, a pretexto da corrupção, visa empoderar os mecanismos não eleitos do regime: a casta intocável dos magistrados, as polícias e a comunicação social privada. Precisamente os mesmos que, durante décadas, conviveram bem com a corrupção! Disputar esta agenda justiceira, sob o pretexto de que não se pode deixar cair o discurso anti-corrupção nas mãos da extrema-direita, é um logro. É como alinhar no discurso contra a burocracia na função pública – a que todos nos opomos –, sem entender que esse discurso, na boca da comunicação social e dos seus comentadeiros, é uma arma de arremesso contra os trabalhadores da administração pública. Pensar que o povo trabalhador, nomeadamente a população pobre e racializada que, já hoje, não vê as suas garantias constitucionais reconhecidas perante a justiça, ia beneficiar do endurecimento dos tribunais e de um reforço de soluções carcerárias é, no mínimo, ingénuo.
Um movimento político julga-se pela sua direção, programa e base social. A agenda justiceira de que falamos ainda não é hoje um movimento político, mas é já uma movimentação. Alguns – a extrema-direita, mas não só, querem transformá-la num verdadeiro movimento. Que movimento seria esse? A sua direção estaria no MP, na comunicação social e em franjas da direita e da extrema-direita; o seu programa é o reforço dos tribunais, das polícias e de outros meios coercivos, em oposição a mecanismos democráticos; a sua base social ainda não existe – as manifestações convocadas são a tentativa de a construir -, mas por mais popular que seja, não poderá mudar o carácter da pulsão justiceira, transformando-o num movimento progressivo anti-corrupção.
Dirão alguns que já houve movimentos altamente progressivos em que estava presente a causa anticorrupção. Foi o caso das grandes mobilizações inorgânicas de 2011 a 2013. Porém, se olharmos para lá da superfície, veremos que essa indignação era oposta à presente: vinha de baixo para cima, não tinha sido construída a partir do MP e da comunicação social, nem desaguava no neofascismo. A indignação desses anos associava a corrupção à desigualdades sociais e à austeridade e combinava-se com um movimento de greves: como alternativa aos “políticos” e à corrupção, erguiam-se as classes trabalhadoras e as suas organizações, não o reforço da mão dura do poder de Estado nem messias justiceiros.
O contexto da Operação Marquês
Então o que pode a esquerda fazer? Deve ficar quieta? Longe disso. O primeiro passo é entender e explicar o que se passa. O primeiro passo é fazer, como no artigo de António Garcia Pereira acima citado, a pedagogia sobre os atropelos do MP que, na senda justiceira, boicotou a acusação e facilitou a vida à defesa do ex-primeiro ministro. Aliás, faz sentido perguntar, como têm feito vários comentadores, porque é que o MP insiste nestes “mega-processos muito mediáticos mas muito gigantescos, e logo verdadeiramente ingeríveis”? Aparentemente, a resposta é que os mega-processos são desenhados mais a pensar na opinião pública – e nas consequências políticas – do que na eficácia judicial. Visam vencer na praça pública e não tanto nos tribunais. O que explica esta politização da justiça e porque se reforça ela precisamente nos anos mais recentes?
Para entender esta guerra política movida pelo MP na praça pública, é útil lembrar o que se passou em Portugal nos anos dos Governos de José Sócrates e naqueles que se lhe seguiram. Nada indica que tenha havido nem mais (nem menos) corrupção durante esse período. Mas foi nesse período que vimos “cair” Sócrates e Ricardo Salgado. Essa exceção à impunidade geral deve ser explicada.
Será coincidência a queda do mais poderoso banqueiro do país e a prisão do ex-primeiro-ministro nesse contexto? Só os muito ingénuos acreditariam nisso. Naturalmente que a forma de fazer política de José Sócrates, particularmente promiscua, e a sua insaciedade por poder e riqueza o tramaram – mas quantos como ele escaparam, antes e depois? Conseguir compreender a Operação Marquês e a excecionalidade que significou a queda de Sócrates e Salgado é essencial para que a esquerda não termine a ser usada para propósitos alheios. Para compreender o que está por trás deste mega-processo, há que ter em conta o seu contexto social e político.
Além do seu estilo truculento e demagogo de Sócrates, a sua Governação caracterizava-se por servir, pela via política, pelo menos, os grandes grupos capitalistas portugueses. Fê-lo através de uma diplomacia económica agressiva, que procurou parceiros para o Capital português em geografias que não faziam parte do roteiro da União Europeia – como a Líbia da Kadafi ou a Venezuela de Chavéz. Ainda contra a pressão da UE, resistiu à entrada da Troika no país. Não o fez por se opor à austeridade, que ele mesmo iniciou, ao aplicar os PEC’s1, mas porque queria manter o controlo sobre o processo de ajuste que aí vinha. Defendeu, se não criminalmente, pelo menos politicamente, os interesses do maior grupo económico português (o GES) naquela que era a maior multinacional portuguesa, a Portugal Telecom. Com a Troika tudo mudou: não só houve um ajuste sobre as classes trabalhadoras, na forma de austeridade, como houve também um golpe sobre o núcleo duro do capitalismo português em benefício dos grupos internacionais. Foi nesse contexto que caiu o BES (e Ricardo Salgado), que se desmantelou a PT, que se vendeu a Tranquilidade e a Fidelidade, a EDP, a Ana, a TAP e os CTT, tudo a grupos estrangeiros. É sabido que foi nesse momento que o sector financeiro passou a ser dominado, em Portugal, por capitais espanhóis. Por exemplo, nos últimos anos o Banco Santander aglutinou o Banif e o Banco Popular. O BPI passou a ser dominado pelo banco espanhol CaixaBank1. O grupo espanhol Abanca (Galego) adquiriu recentemente a operação da Caixa Geral de Depósitos e a sucursal do Novo Banco em Espanha2. Hoje, cerca de um terço da banca está nas mãos de grupos espanhóis. Sobram o Millennium BCP, que tem como maiores acionistas a chinesa Fosun e a angolana Sonangol, a Caixa Geral de Depósitos, o Montepio, da Associação Mutualista Montepio Geral, e o Grupo Crédito Agrícola, de cariz cooperativo. Se é verdade que toda a direita e grande parte do PS encaixaram e aceitaram este deslocamento do núcleo central do capitalismo português, era impossível que um ajuste desta dimensão não tivesse consequências nas cúpulas políticas do regime. É provável que isso tenha contribuído para que José Sócrates não tenha beneficiado do beneplácito que bafejou antes tantos governantes com indícios incriminatórios igualmente flagrantes. De tão ligado que estava ao núcleo duro do capital português, era provável – e útil – que caísse com eles. Não significa que todo o processo tenha surgido com essa motivação político-económica. Mas é evidente que, desta vez, a acusação de um ex-governante ia a favor dos grandes interesses económicos, nomeadamente do ajuste financeiro dos anos da Troika, que beneficiava a finança internacional, em detrimento do núcleo duro do capital português que Sócrates tão bem servira.
Não é esta a narrativa que o ex-primeiro-ministro usa para contextualizar o que chama de “persegução política”. Num auto-panegírico narcisista e quase delirante, publicado no jornal Público, José Sócrates defende que tudo isto aconteceu à semelhança de um golpe, para impor a austeridade e abrir caminho à extrema-direita. Sugere, indiretamente, que o seu caso se assemelharia ao de Lula. Mas é evidente nem Sócrates é Lula, nem o PS é o (nem um) Partido dos Trabalhadores. Tão pouco o enriquecimento de Sócrates à custa de “empréstimos” milionários feitos por amigos é comparável ao apartamento do Guarujá, em que Lula nunca viveu, mas em se sustentava a acusação a contra ele. Menos crível é que José Sócrates fosse um opositor da austeridade – foi aliás o seu iniciador, como vimos acima. Mas é verdade que a Operação Marquês tem traços em comum com a Lava-Jato, como a tentativa de substituir provas por indícios, ou o de ser uma acusação mais pensada para a opinião pública do que para a eficácia jurídica. Carlos Alexandre, no seu messianismo anti-política, tem muito de Sério Moro e chegou a aparecer publicamente com este e com Antoni di Pietro, responsável pela famosa “Operação Mãos Limpas”3. Tal como a Lava-Jato, a Operação Marquês assentava no paradigma justiceiro, em que comunicação social e aparelho judicial se unem, num método de vale-tudo para intervir na vida política do país, a pretexto do combate à corrupção. Não sabemos se José Sócrates pretendia ou não concorrer às eleições presidenciais de 2016, mas a verdade é que tal foi impedido pelo juiz Carlos Alexandre (que se encontrava ilegitimamente à cabeça da instrução do processo) através de uma prisão preventiva dificilmente justificável…
O que fazer?
É igualmente exagerado fazer uma associação direta entre o julgamento de José Sócrates e o surgimento e sucesso eleitoral do Chega, como o ex-primeiro ministro ensaia no artigo que escreveu. Mas não duvidemos que é a extrema-direita quem está mais apetrechada para cavalgar, não o combate à corrupção (logo quem!), mas a pulsão justiceira alimentada pelo MP e a Comunicação Social. Isto não acontece porque André Ventura tenha provas dadas no combate à corrupção, antes pelo contrário. Mas porque a indignação anti-Sócrates e anti-Ivo Rosa alimenta e alimenta-se do reforço dos mecanismos coercivos do Estado e no ataque aos seus mecanismos mais democráticos, no que coincide com o programa do Chega. Por isso, quem acredita que abafa Ventura ao defender as soluções carcerárias mais alto que ele engana-se: a extrema-direita cresce sempre que as suas bandeiras são agitadas, mesmo que por outros.
A solução à esquerda exige mais coragem. Exige a coragem de dizer coisas que não ganham votos e de não ceder à pressão justiceira-mediática. Exige um programa anti-capitalista contra a corrupção, que começa por defender o fim do sigilo bancário e dos offshores, a criminalização do enriquecimento ilícito e avance em propostas de nacionalização e fiscalização democrática da banca e das grandes empresas. Exige a crítica à casta inescrutável dos juízes e um programa de democratização da justiça, assim como a crítica ao sistema carcerário, ao invés de o apontar como solução mágica. Exige, sobretudo, a capacidade de dar uma explicação crítica, anti-capitalista e compreensível aos temas fraturantes que surgem na agenda mediática, mas também de polarizar a situação política pela esquerda, na defesa de trabalho e direitos e na defesa do meio ambiente, através da mobilização social.
Nota: A fotografia que ilustra este artigo mostra os juízes Carlos Alexandre, Sérgio Moro, Baltasar Garzón e Antoni di Pietrio no Casino do Estoril, em 2017;
1 Os Programas de Estabilidade e Crescimento (PECs) são os quatro programas apresentados pelo XVIII Governo Constitucional de Portugal para combater a crise de sobre-endividamento do Estado Português.
O primeiro PEC, que ficaria conhecido como PEC 1, foi apresentado em Março de 2010. Este contava com medidas de corte na despesa pública consideradas necessárias para o período 2010-2013.
O segundo PEC, que ficaria conhecido como PEC 2 nasceu da necessidade de reajustar as medidas aprovadas pelo PEC I passados dois meses, em Maio de 2010. Previa mais cortes orçamentais e o aumento do IVA.
Passados quatro meses, em Setembro de 2010, foi aprovado um novo PEC pouco tempo antes da aprovação do Orçamento de Estado para 2011. Este previa cortes ainda maiores que os seus dois antecessores. (Fonte: Wikepédia)
2 https://www.dinheirovivo.pt/empresas/a-banca-portuguesa-esta-cada-vez-mais-espanhola-12779577.html
3 https://expresso.pt/economia/2021-04-05-Novo-Banco-acorda-com-Abanca-venda-de-sucursal-em-Espanha–que-causou-perdas-de-166-milhoes-em-2020–79593bce
4 “A Operação Mãos Limpas, coordenada pelo Procurador da República Antonio Di Pietro, levou ao fim da chamada Primeira República Italiana (1948 – 1994) e a profundas mudanças no quadro partidário, com o desaparecimento de vários partidos políticos. Muitos políticos e industriais cometeram suicídio quando os seus crimes foram descobertos,[1][2] enquanto outros se tornaram foragidos, dentro e fora do país.” Fonte: Wikipedia ( https://pt.wikipedia.org/wiki/Opera%C3%A7%C3%A3o_M%C3%A3os_Limpas )
Uma excelente reflexão.
Tranquiliza-me por ir no mesmo sentido ao que já escrevi, mas com alguns receios por ler gente que estimo escrever noutra direção.
GostarGostar