Olhai para a Comuna de Paris. Era a ditadura do proletariado.

O texto seguinte é um excerto do prefácio de Engels ao conjunto de textos de Marx publicados com o título “A Guerra Civil em França”. O texto completo pode ser lido em A Guerra Civil em França (marxists.org).

(…)

Graças ao desenvolvimento económico e político da França desde 1789, Paris está desde há cinquenta anos colocada na situação em que nenhuma revolução pôde ali rebentar que não tomasse um carácter proletário, de tal modo que o proletariado, que pagava com o seu sangue a vitória, surgia, depois da vitória, com reivindicações próprias. Estas reivindicações eram mais ou menos imprecisas e mesmo confusas, consoante, em cada caso, o grau de desenvolvimento dos operários parisienses; mas, em conclusão, todas elas apontaram para a eliminação do antagonismo de classes entre capitalistas e operários. A verdade é que não se sabia como isso havia de acontecer. Mas a própria reivindicação, ainda quando indefinidamente sustentada, continha um perigo para a ordem social estabelecida; os operários que a colocavam estavam ainda armados; para os burgueses que se encontravam ao leme do Estado, o desarmamento dos operários era, por isso, imperativo primeiro. Por isso, depois de cada revolução conquistada pela luta dos operários, nova luta, que termina com a derrota dos operários.

(…)

A Comuna teve mesmo de reconhecer, desde logo, que a classe operária, uma vez chegada à dominação, não podia continuar a administrar com a velha máquina de Estado; que esta classe operária, para não perder de novo a sua própria dominação, acabada de conquistar, tinha, por um lado, de eliminar a velha maquinaria de opressão até aí utilizada contra si própria, mas, por outro lado, de precaver-se contra os seus próprios deputados e funcionários, ao declarar estes, sem qualquer excepção, revogáveis a todo o momento. Em que consistia a qualidade característica do Estado, até então? A sociedade tinha criado originalmente os seus órgãos próprios, por simples divisão de trabalho, para cuidar dos seus interesses comuns. Mas estes órgãos, cuja cúpula é o poder de Estado, tinham-se transformado com o tempo, ao serviço dos seus próprios interesses particulares, de servidores da sociedade em senhores dela. Como se pode ver, por exemplo, não meramente na monarquia hereditária mas igualmente na república democrática. Em parte alguma os «políticos» formam um destacamento da nação mais separado e mais poderoso do que precisamente na América do Norte. Ali, cada um dos dois grandes partidos aos quais cabe alternadamente a dominação é ele próprio governado por pessoas que fazem da política um negócio, que especulam com lugares nas assembleias legislativas da União e de cada um dos Estados, ou que vivem da agitação para o seu partido e são, após a vitória deste, recompensados com cargos. É sabido que os americanos procuram, desde há trinta anos, sacudir este jugo tornado insuportável e que, apesar de tudo, se atascam sempre mais fundo nesse pântano da corrupção. É precisamente na América que podemos ver melhor como se processa esta autonomização do poder de Estado face à sociedade, quando originalmente estava destinado a ser mero instrumento desta. Não existe ali uma dinastia, uma nobreza, um exército permanente — exceptuados os poucos homens para a vigilância dos índios — nem burocracia com emprego fixo ou direito à reforma. E, não obstante, temos ali dois grandes bandos de especuladores políticos que, revezando-se, tomam conta do poder de Estado e o exploram com os meios mais corruptos para os fins mais corruptos — e a nação é impotente contra estes dois grandes cartéis de políticos pretensamente ao seu serviço, mas que na realidade a dominam e saqueiam.

Contra esta transformação, inevitável em todos os Estados até agora existentes, do Estado e dos órgãos do Estado, de servidores da sociedade em senhores da sociedade, aplicou a Comuna dois meios infalíveis. Em primeiro lugar, ocupou todos os cargos administrativos, judiciais, docentes, por meio de eleição por sufrágio universal dos interessados, e mais, com revogação a todo o momento por estes mesmos interessados. E, em segundo lugar, ela pagou por todos os serviços, grandes e pequenos, apenas o salário que outros operários recebiam. O ordenado mais elevado que ela pagava era de 6000 francos. Assim se fechou a porta, eficazmente, à caça aos cargos e à ganância da promoção, mesmo sem os mandatos imperativos que, além do mais, no caso dos delegados para corpos representativos ainda foram acrescentados.

Esta destruição do poder de Estado até aqui existente e a sua substituição por um novo, na verdade democrático, está descrita em pormenor no terceiro capítulo da Guerra Civil. Mas era necessário entrar resumidamente aqui, mais uma vez, nalguns traços daquele porque, precisamente na Alemanha, a superstição do Estado transpôs-se da filosofia para a consciência geral da burguesia e mesmo de muitos operários. Segundo a representação filosófica, o Estado é a «realização da Ideia», ou o reino de Deus na terra traduzido para o filosófico, domínio onde se realizam ou devem realizar-se a verdade e a justiça eternas. E daí resulta, pois, uma veneração supersticiosa do Estado e de tudo o que com o Estado se relaciona, a qual aparece tanto mais facilmente quanto se está habituado, desde criança, a imaginar que os assuntos e interesses comuns a toda a sociedade não poderiam ser tratados de outra maneira do que como têm sido até aqui, ou seja, pelo Estado e pelas suas autoridades bem providas. E crê-se ter já dado um passo imensamente audaz quando alguém se liberta da crença na monarquia hereditária e jura pela república democrática. Mas, na realidade, o Estado não é outra coisa senão uma máquina para a opressão de uma classe por uma outra e, de facto, na república democrática não menos do que na monarquia; no melhor dos casos, um mal que é legado ao proletariado vitorioso na luta pela dominação de classe e cujos piores aspectos ele não poderá deixar de cortar imediatamente o mais possível, tal como no caso da Comuna, até que uma geração crescida em novas, livres condições sociais, se torne capaz de se desfazer de todo o lixo do Estado.

O filisteu social-democrata caiu recentemente, outra vez, em salutar terror, à palavra: ditadura do proletariado. Ora bem, senhores, quereis saber que rosto tem esta ditadura? Olhai para a Comuna de Paris. Era a ditadura do proletariado.

Londres, no vigésimo aniversário da Comuna de Paris, 18 de Março de 1891. F. Engels

Publicado na revista Die Neue Zeit. Bd. 2, n.” 28, 1890-1891, e no livro: Karl Marx, Der Burgerkrieg in Frankreich, Berlin, 1891

Ilustração de Jaques Tardi na novela gráfica “Le Cri du Peuple”, adaptação do romance com o mesmo nome de Jean Vautrin.

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