Karl Marx escreveu sobre a Comuna de Paris de 1871 um conjunto de textos reunidos no livro “A guerra civil em França”. Esses textos foram escritos por Marx como mensagens do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores dirigidos aos membros da Internacional espalhados pelo mundo. Publicamos aqui em três partes, o capítulo III dessa mensagem.
Terceira parte
Se a Comuna era, assim, o verdadeiro representante de todos os elementos sãos da sociedade francesa e, portanto, o verdadeiro governo nacional, ela era ao mesmo tempo, como governo de operários, como campeã intrépida da emancipação do trabalho, expressivamente internacional. A vista do exército prussiano, que tinha anexado à Alemanha duas províncias francesas, a Comuna anexava à França o povo trabalhador do mundo inteiro.
O segundo Império tinha sido o jubileu da vigarice cosmopolita, com os devassos de todos os países a precipitarem-se ao seu chamamento para participarem nas suas orgias e na pilhagem do povo francês. Mesmo neste momento, o braço direito de Thiers é Ganesco, o valáquio imundo, e o seu braço esquerdo é Markovski, o espião russo. A Comuna concedeu a todos os estrangeiros a honra de morrer por uma causa imortal. Entre a guerra estrangeira, perdida pela traição da burguesia, e a guerra civil, provocada pela sua conspiração com o invasor estrangeiro, a burguesia tinha encontrado tempo para exibir o seu patriotismo organizando caçadas policiais aos alemães em França. A Comuna fez de um operário alemão [Leo Frenkel] o seu ministro do Trabalho. Thiers, a burguesia, o segundo Império, tinham continuamente enganado a Polónia com ruidosas profissões de simpatia, entregando-a, na realidade, à Rússia, e fazendo o trabalho sujo desta. A Comuna honrou os filhos heróicos da Polónia [J. Dombrowski e W. Wróblewski] colocando-os à cabeça dos defensores de Paris. E, para marcar amplamente a nova era da história que ela estava consciente de iniciar, a Comuna deitou abaixo esse símbolo colossal da glória marcial, a coluna Vendôme, sob os olhos dos vencedores prussianos, por um lado, e do exército bonapartista dirigido por generais bonapartistas, por outro.
A grande medida social da Comuna foi a sua própria existência actuante. As suas medidas especiais não podiam senão denotar a tendência de um governo do povo pelo povo. Tais foram a abolição do trabalho nocturno nas padarias; a proibição, com penalização, da prática dos patrões que consistia em reduzir salários cobrando multas a gente que trabalha para eles, sob variados pretextos — um processo em que o patrão combina na sua própria pessoa os papéis de legislador, de juiz e de executor, e surripia o dinheiro para o bolso. Outra medida desta espécie foi a entrega a associações de operários, sob reserva de compensação, de todas as oficinas e fábricas fechadas, quer os capitalistas respectivos tivessem fugido quer tivessem preferido parar o trabalho.
As medidas financeiras da Comuna, notáveis pela sua sagacidade e moderação, só podiam ser as que eram compatíveis com o estado de uma cidade cercada. Considerando os roubos colossais cometidos sobre a cidade de Paris pelas grandes companhias financeiras e pelos empreiteiros, com a protecção de Haussmann, a Comuna teria tido um direito [title] incomparavelmente melhor para lhes confiscar a propriedade do que Louis-Napoléon teve contra a família Orléans. Os Hohenzollern e os oligarcas ingleses, que colheram, uns e outros, uma grande parte das suas propriedades da pilhagem da Igreja, ficaram grandemente chocados, naturalmente, com os apenas 8000 francos que a Comuna retirou da secularização.
Enquanto o governo de Versalhes, mal recuperou algum ânimo e alguma força, usava os meios mais violentos contra a Comuna; enquanto suprimia a livre expressão da opinião por toda a França, proibindo mesmo reuniões de delegados das grandes cidades; enquanto submetia Versalhes e o resto da França a uma espionagem que ultrapassou de longe a do segundo Império; enquanto fazia queimar pelos seus inquisidores-gendarmes todos os jornais impressos em Paris e inspeccionava toda a correspondência de e para Paris; enquanto na Assembleia Nacional as mais tímidas tentativas para colocar uma palavra a favor de Paris eram submergidas em gritaria, de uma maneira desconhecida mesmo da Chambre introuvable de 1816; com a guerra selvagem de Versalhes fora de Paris e, dentro, as suas tentativas de corrupção e conspiração — não teria a Comuna atraiçoado vergonhosamente a sua segurança, pretendendo respeitar todas as boas maneiras e aparências de liberalismo como num tempo de profunda paz? Tivesse o governo da Comuna sido semelhante ao do Sr. Thiers e não teria havido mais ocasião para suprimir jornais do partido da ordem em Paris do que houve para suprimir jornais da Comuna em Versalhes.
Era na verdade irritante para os Rurais que, no próprio momento em que declaravam ser o regresso à Igreja o único meio de salvação da França, a Comuna infiel desenterrasse os mistérios peculiares do convento de freiras de Picpus e da Igreja de Saint-Laurent. Era uma sátira contra o Sr. Thiers o facto de que, enquanto ele fazia chover grã-cruzes sobre os generais bonapartistas, em reconhecimento da sua mestria a perder batalhas, a assinar capitulações e a enrolar cigarros em Wilhelmshõhe, a Comuna demitia e prendia os seus generais sempre que eram suspeitos de negligência para com os seus deveres. A expulsão e prisão, pela Comuna, de um dos seus membros, que nela se tinha esgueirado sob um falso nome e sofrido seis dias de prisão em Lyon por bancarrota simples, não era um insulto deliberado, atirado a Jules Favre, o falsário, então ainda ministro dos Negócios Estrangeiros de França, ainda a vender a França a Bismarck e ainda a ditar as suas ordens a esse governo-modelo da Bélgica? Mas, na verdade, a Comuna não aspirava à infalibilidade, o atributo invariável de todos os governos de velho cunho. Ela publicava os seus ditos e feitos, inteirava o público de todas as suas falhas.
Em cada revolução intrometem-se, ao lado dos seus representantes verdadeiros, homens de um cunho diferente; alguns deles sobreviventes e devotos de revoluções passadas, sem discernimento do movimento presente, mas conservando influência popular pela sua honestidade e coragem conhecidas ou pela simples força da tradição; outros, meros vociferadores, que à força de repetir ano após ano o mesmo sortido de declamações estereotipadas contra o governo do dia, se insinuaram na reputação de revolucionários da primeira água. Depois do 18 de Março também surgiram tais homens e, nalguns casos, imaginaram desempenhar papéis preeminentes. A tanto quanto chegou o seu poder, estorvaram a acção real da classe operária, exactamente como homens desta espécie tinham estorvado o pleno desenvolvimento de cada revolução anterior. São um mal inevitável: com o tempo são sacudidos; mas tempo não foi concedido à Comuna.
Prodigiosa, na verdade, foi a mudança que a Comuna operou em Paris! Não mais qualquer traço da Paris meretrícia do segundo Império. Paris já não era o ponto de encontro dos senhores da terra britânicos, dos absentistas irlandeses, dos ex-escravistas e ricos feitos à pressa americanos, dos ex-proprietários de servos russos e dos boiardos valáquios. Não mais cadáveres na morgue nem arrombamentos nocturnos, quase nenhuns roubos; de facto, pela primeira vez desde os dias de Fevereiro de 1848, as ruas de Paris eram seguras, e isto sem qualquer polícia de qualquer espécie.
«Já não ouvimos falar», dizia um membro da Comuna, «de assassínios, de roubos nem de agressões; dir-se-ia que a polícia levou mesmo com ela para Versalhes toda a sua clientela conservadora.»
As cocottes tinham reencontrado o rasto dos seus protectores — os homens de família, de religião e, acima de tudo, de propriedade, em fuga. Em vez daquelas, as verdadeiras mulheres de Paris apareceram de novo à superfície, heróicas, nobres e dedicadas, como as mulheres da antiguidade. A Paris operária, pensante, combatente, a sangrar — quase esquecida, na sua incubação de uma sociedade nova, dos canibais às suas portas — radiante no entusiasmo da sua iniciativa histórica!
Oposto a este mundo novo em Paris, observe-se o mundo velho em Versalhes — essa assembleia dos vampiros de todos os regimes defuntos, legitimistas e orleanistas, ávidos de se alimentarem da carcaça da nação — com uma cauda de republicanos antediluvianos, sancionando com a sua presença na Assembleia a rebelião dos escravistas, fiando-se, para a manutenção da sua república parlamentar, na vaidade do charlatão senil à sua cabeça, e caricaturando 1789 ao realizarem as suas reuniões de espectros no Jeu de Paume. Ali estava ela, essa Assembleia, a representante de tudo o que estava morto em França, mantida numa aparência de vida só pelos sabres dos generais de Louis Bonaparte. Paris toda ela verdade, Versalhes toda ela mentira; e essa mentira, exalada pela boca de Thiers.
Thiers diz a uma deputação de presidentes de município de Seine-et-Oise:
«Podeis contar com a minha palavra, nunca faltei a ela.»
Diz à própria Assembleia que «ela é a mais livremente eleita e a mais liberal que a França teve alguma vez»; diz a sua soldadesca heterogénea que ela era «a admiração do mundo e o mais belo exército que a França teve alguma vez»; diz às províncias que o bombardeamento de Paris, por ele, era um mito:
«Se foram atirados alguns tiros de canhão, não foi pelo exército de Versalhes, mas por alguns insurrectos, para fazer crer que se batem quando nem sequer ousam mostrar-se.»
Diz outra vez às províncias que
«a artilharia de Versalhes não bombardeia Paris, apenas a canhoneia».
Diz ao arcebispo de Paris que as pretensas execuções e represálias(!) atribuídas às tropas de Versalhes era tudo disparate. Diz a Paris que só estava ansioso «por libertá-la dos horríveis tiranos que a oprimem» e que, na realidade, a Paris da Comuna não era «mais do que um punhado de celerados».
A Paris do Sr. Thiers não era a Paris real da «vil multidão» mas uma Paris fantasma, a Paris dos franc-fileurs, a Paris macho e fêmea dos Boulevards — a Paris rica, capitalista, dourada, preguiçosa, que se apinhava agora em Versalhes, Saint-Denis, Rueil e Saint-Germain com os seus lacaios, os seus fura-greves, a sua bohême literária e as suas cocottes; que considerava a guerra civil só uma diversão agradável, que olhava o desenrolar da batalha através de telescópios, que contava os tiros de canhão e jurava pela sua própria honra e pela das suas prostitutas que o espectáculo estava de longe mais bem montado do que o que costumava ser à Porte-Saint-Martin. Os homens que caíam estavam realmente mortos; os gritos dos feridos eram gritos mesmo a sério; e, além disso, a coisa era toda ela tão intensamente histórica.
É esta a Paris do Sr. Thiers, como a emigração de Koblenz era a França do Sr. de Calonne.
1) No convento de Picpus foram descobertos casos de reclusão de freiras em celas durante muitos anos; foram encontrados também instrumentos de tortura; na Igreja de Saint-Laurent foi descoberto um cemitério clandestino, prova de que eram cometidos assassínios. A Comuna divulgou estes factos no jornal Mot d’Ordre (Palavra de Ordem) de 5 de Maio de 1871, e também na brochura Les crimes des congregations religieuses (Os Crimes das Congregações Religiosas).
2) Francs-fileurs (literalmente «franco-fugitivos»): alcunha desdenhosa dada aos burgueses parisienses que fugiram da cidade durante o cerco. A alcunha tinha um carácter irónico dada a sua analogia com a palavra francs-tireurs (franco-atiradores), designação dos guerrilheiros franceses que participaram activamente na luta contra os prussianos.
3) Koblenz, cidade da Alemanha. Durante a revolução burguesa francesa de fins do século XVIII foi o centro da emigração da nobreza monárquica e da preparação da intervenção contra a França revolucionária. Em Koblenz encontrava-se o governo emigrado chefiado por Calonne, ultra-reaccionário, ex-ministro de Luís XVI.