Marx sobre a Comuna de Paris

Karl Marx escreveu sobre a Comuna de Paris de 1871 um conjunto de textos reunidos no livro “A guerra civil em França”. Esses textos foram escritos por Marx como mensagens do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores dirigidos aos membros da Internacional espalhados pelo mundo. Publicamos aqui em três partes, o capítulo III dessa mensagem.

Segunda parte

A Comuna de Paris havia obviamente de servir de modelo a todos os grandes centros industriais da França. Uma vez estabelecido o régime comunal em Paris e nos centros secundários, o velho governo centralizado teria de dar lugar, nas províncias também, ao autogoverno dos produtores. Num esboço tosco de organização nacional que a Comuna não teve tempo de desenvolver, estabeleceu-se claramente que a Comuna havia de ser a forma política mesmo dos mais pequenos povoados do campo, e que nos distritos rurais o exército permanente havia de ser substituído por uma milícia nacional com um tempo de serviço extremamente curto. As comunas rurais de todos os distritos administrariam os seus assuntos comuns por uma assembleia de delegados na capital de distrito e estas assembleias distritais, por sua vez, enviariam deputados à Delegação Nacional em Paris, sendo cada delegado revogável a qualquer momento e vinculado pelo mandat imperatif (instruções formais) dos seus eleitores. As poucas mas importantes funções que ainda restariam a um governo central não seriam suprimidas, como foi intencionalmente dito de maneira deturpada, mas executadas por agentes comunais, e por conseguinte estritamente responsáveis. A unidade da nação não havia de ser quebrada, mas, pelo contrário, organizada pela Constituição comunal e tornada realidade pela destruição do poder de Estado, o qual pretendia ser a encarnação dessa unidade, independente e superior à própria nação, de que não era senão uma excrescência parasitária. 

Enquanto os órgãos meramente repressivos do velho poder governamental haviam de ser amputados, as suas funções legítimas haviam de ser arrancadas a uma autoridade que usurpava a preeminência sobre a própria sociedade e restituídas aos agentes responsáveis da sociedade. Em vez de decidir uma vez cada três ou seis anos que membro da classe governante havia de representar mal o povo no Parlamento, o sufrágio universal havia de servir o povo, constituído em Comunas, assim como o sufrágio individual serve qualquer outro patrão em busca de operários e administradores para o seu negócio. E é bem sabido que as companhias, como os indivíduos, em matéria de negócio real sabem geralmente como colocar o homem certo no lugar certo e, se alguma vez cometem um erro, como repará-lo prontamente. Por outro lado, nada poderia ser mais estranho ao espírito da Comuna do que substituir o sufrágio universal pela investidura hierárquica. 

É em geral a sorte de criações históricas completamente novas serem tomadas erradamente como a réplica de formas mais antigas e mesmo defuntas da vida social, com as quais podem sustentar uma certa semelhança. Assim, esta Comuna nova, que quebra o moderno poder de Estado, foi tomada erradamente como uma reprodução das Comunas medievais que precederam, primeiro, esse mesmo poder de Estado, e se tornaram depois o seu substrato. A Constituição Comunal foi tomada erradamente como uma tentativa para dispersar numa federação de pequenos Estados — como a sonharam Montesquieu e os Girondinos — essa unidade de grandes nações que, embora realizada originalmente pela força política, agora se tornou um poderoso coeficiente de produção social. O antagonismo da Comuna contra o poder de Estado foi tornado erradamente como uma forma exagerada da antiga luta contra a ultra centralização. Circunstâncias históricas peculiares podem ter impedido o desenvolvimento clássico, como na França, da forma burguesa de governo e podem ter permitido, como na Inglaterra, completar os grandes órgãos centrais de Estado por assembleias paroquiais [vestries] corruptas, por conselheiros traficantes, por ferozes administradores da assistência pública [poor-law guardians] nas cidades e por magistrados virtualmente hereditários nos condados. A Constituição Comunal teria restituído ao corpo social todas as forças até então absorvidas pelo Estado parasita, que se alimenta da sociedade e lhe estorva o livre movimento. Por este único acto ela teria iniciado a regeneração da França. A classe média francesa provincial viu na Comuna uma tentativa para restaurar a preponderância que a sua ordem manteve sobre o campo com Louis-Philippe e que foi suplantada, com Louis-Napoléon, pela pretensa dominação do campo sobre as cidades. Na realidade, a Constituição Comunal colocaria os produtores rurais sob a direcção intelectual das capitais dos seus distritos e estas ter-lhes-iam assegurado, nos operários, os naturais procuradores dos seus interesses. A própria existência da Comuna implicava, como uma coisa evidente, liberdade municipal local, mas já não como um obstáculo ao poder de Estado, agora substituído. Só podia passar pela cabeça de um Bismarck, o qual, quando não comprometido nas suas intrigas de sangue e ferro, gosta sempre de retomar a sua velha ocupação, tão conveniente ao seu calibre mental, de colaborador do Kladderadatsch (o Punch de Berlim), só em tal cabeça podia entrar o atribuir à Comuna de Paris aspirações a essa caricatura da velha organização municipal francesa de 1791 – a constituição municipal prussiana – que rebaixa os governos de cidade a meras rodas secundárias na maquinaria policial do Estado prussiano. A Comuna fez uma realidade dessa deixa das revoluções burguesas – governo barato — destruindo as duas maiores fontes de despesa: o exército permanente e o funcionalismo de Estado. A sua própria existência pressupunha a não existência de monarquia, a qual, pelo menos na Europa, é o lastro normal e o disfarce indispensável da dominação de classe. Ela fornecia à República a base de instituições realmente democráticas. Mas nem governo barato nem «República verdadeira» eram o seu alvo último; eram-lhe meramente concomitantes. 

A multiplicidade de interpretações a que a Comuna esteve sujeita e a multiplicidade de interesses que a explicaram em seu favor mostram que ela era uma forma política inteiramente expansiva, ao passo que todas as formas anteriores de governo têm sido marcadamente repressivas. Era este o seu verdadeiro segredo: ela era essencialmente um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a apropriadora, a forma política, finalmente descoberta, com a qual se realiza a emancipação económica do trabalho.

Não fosse esta última condição, a Constituição Comunal teria sido uma impossibilidade e um engano. A dominação política do produtor não pode coexistir com a perpetuação da sua escravidão social. A Comuna havia pois de servir como uma alavanca para extirpar os fundamentos económicos sobre os quais assenta a existência de classes e, por conseguinte, a dominação de classe. Emancipado o trabalho, todo o homem se torna um trabalhador e o trabalho produtivo deixa de ser um atributo de classe. 

É um estranho facto. Apesar de toda a conversa grandiloquente e toda a imensa literatura dos últimos sessenta anos sobre a Emancipação do Trabalho, assim que em qualquer parte os trabalhadores tomam o assunto nas suas próprias mãos com determinação, surge logo toda a fraseologia apologética dos porta-vozes da presente sociedade com os seus dois pólos: Capital e Escravatura Assalariada (o senhor da terra não é agora senão o sócio comanditário do capitalista), como se a sociedade capitalista ainda estivesse no seu mais puro estado de inocência virginal, com os seus antagonismos ainda não desenvolvidos, os seus enganos ainda não desmascarados, as suas realidades prostituídas ainda não postas a nu. A Comuna, exclamam eles, tenciona abolir a propriedade, base de toda a civilização! Sim, senhores, a Comuna tencionava abolir toda essa propriedade de classe que faz do trabalho de muitos a riqueza de poucos. Ela aspirava à expropriação dos expropriadores. Queria fazer da propriedade individual uma realidade transformando os meios de produção, terra e capital, agora principalmente meios de escravizar e explorar o trabalho, em meros instrumentos de trabalho livre e associado. — Mas isto é comunismo, comunismo «impossível»! Ora pois, aqueles membros das classes dominantes que são bastante inteligentes para perceber a impossibilidade de continuar o sistema presente — e são muitos — tornaram-se os apóstolos, importunos e de voz cheia, da produção cooperativa. Se não cabe à produção cooperativa permanecer uma fraude e uma armadilha; se lhe cabe suplantar o sistema capitalista; se cabe às sociedades cooperativas unidas regular a produção nacional segundo um plano comum, tomando-a assim sob o seu próprio controlo e pondo termo à anarquia constante e às convulsões periódicas que são a fatalidade da produção capitalista — que seria isto, senhores, senão comunismo, comunismo «possível»? 

A classe operária não esperou milagres da Comuna. Ela não tem utopias prontas a introduzir par décret du peuple. Sabe que para realizar a sua própria emancipação — e com ela essa forma superior para a qual tende irresistivelmente a sociedade presente pela sua própria actividade económica — terá de passar por longas lutas, por uma série de processos históricos que transformam circunstâncias e homens. Não tem de realizar ideais mas libertar os elementos da sociedade nova de que está grávida a própria velha sociedade burguesa em colapso. Na plena consciência da sua missão histórica e com a resolução heróica de agir à altura dela, a classe operária pode permitir-se sorrir à invectiva grosseira dos lacaios de pluma e tinteiro e ao patrocínio didáctico dos doutrinadores burgueses de boas intenções, que derramam as suas trivialidades ignorantes e as suas manias sectárias no tom oracular da infalibilidade científica.

Quando a Comuna de Paris tomou a direcção da revolução nas suas próprias mãos; quando simples operários ousaram pela primeira vez infringir o privilégio governamental dos seus «superiores naturais» e, em circunstâncias de dificuldade sem exemplo, executaram a sua obra modestamente, conscienciosamente e eficazmente — executaram-na com salários, o mais elevado dos quais mal atingia, segundo uma alta autoridade científica , um quinto do mínimo requerido para uma secretária de certo conselho escolar de Londres — o velho mundo contorceu-se em convulsões de raiva, à vista da Bandeira Vermelha, símbolo da República do Trabalho, a flutuar sobre o Hôtel de Ville

E, contudo, era a primeira revolução em que a classe operária era abertamente reconhecida como a única classe capaz de iniciativa social, mesmo pela grande massa da classe média de Paris — lojistas, comerciantes, negociantes — exceptuados só os capitalistas ricos. A Comuna tinha salvo aqueles por uma sagaz regulamentação dessa causa permanentemente repetida de disputa entre as próprias classes médias: as contas de deve e haver. A mesma parte da classe média, depois de ter ajudado a derrotar a insurreição operária de Junho de 1848, foi logo sacrificada sem cerimónias aos seus credores pela então Assembleia Constituinte. Mas este não era o seu único motivo para se juntar agora em torno da classe operária. Ela sentia que só havia uma alternativa — a Comuna ou o Império — qualquer que fosse o nome com que pudesse reaparecer. O Império tinha-a arruinado economicamente pela devastação que fez da riqueza pública, pela burla financeira em grande escala, que encorajou, pelos adereços que emprestou à centralização artificialmente acelerada de capital e pela expropriação concomitante nas suas próprias fileiras. Ele tinha-a suprimido politicamente, tinha-a escandalizado moralmente pelas suas orgias, tinha insultado o seu voltairianismo ao entregar a educação dos seus filhos aos frères Ignorantins, tinha revoltado o seu sentimento nacional francês ao precipitá-la de cabeça numa guerra que só deixava um equivalente para as ruínas que fizera: o desaparecimento do Império. De facto, após o êxodo de Paris de toda a alta bohême bonapartista e capitalista, o verdadeiro partido da ordem da classe média apareceu na forma da «Union Républicaine», alistando-se sob as cores da Comuna e defendendo-a contra a deturpação premeditada de Thiers. O tempo terá de mostrar se a gratidão deste grande corpo da classe média resistirá à severa prova actual. 

A Comuna tinha inteira razão ao dizer aos camponeses: «A nossa vitória é a vossa única esperança.» De todas as mentiras saídas da casca em Versalhes e repercutidas pelo glorioso Europeu penny-a-liner, uma das mais tremendas foi a de que os Rurais representavam o campesinato francês. Pense-se só no amor do camponês francês pelos homens a quem teve de pagar, depois de 1815, os mil milhões de indemnização. Aos olhos do camponês francês, a própria existência de um grande proprietário fundiário é em si uma usurpação sobre as suas conquistas de 1789. O burguês, em 1848, tinha-lhe sobrecarregado a parcela de terra com a taxa adicional de quarenta e cinco cêntimos por franco; mas fê-lo, então, em nome da revolução; ao passo que, agora, tinha fomentado uma guerra civil contra a revolução para atirar sobre os ombros do camponês o fardo principal dos cinco mil milhões de indemnização a pagar ao prussiano. 

A Comuna, por outro lado, numa das suas primeiras proclamações, declarava que os verdadeiros causadores da guerra teriam de ser levados a pagar o seu custo. A Comuna teria libertado o camponês do imposto de sangue — ter-lhe-ia dado um governo barato —, teria transformado as suas actuais sanguessugas, o notário, o advogado, o oficial de diligências e outros vampiros judiciais, em agentes comunais assalariados, eleitos por ele e perante ele responsáveis. Tê-lo-ia livrado da tirania do garde champêtre, do gendarme e do prefeito; teria posto o esclarecimento pelo mestre-escola no lugar da estultificação pelo padre. E o camponês francês é, acima de tudo, um homem de cálculo. Teria achado extremamente razoável que a paga do padre, em vez de ser extorquida pelo cobrador de impostos, estivesse apenas dependente da acção espontânea dos instintos religiosos dos paroquianos. Tais eram as grandes vantagens imediatas que o governo da Comuna — e só esse governo — oferecia ao campesinato francês. É pois inteiramente supérfluo desenvolver aqui os problemas mais complicados, mas vitais, que só a Comuna estava apta, e ao mesmo tempo forçada, a resolver em favor do camponês, isto é, a dívida hipotecária, jazendo como um pesadelo sobre a sua parcela de solo, o prolétariat foncier (o proletariado rural) que sobre ela crescia diariamente, e a sua expropriação dessa parcela, imposta a um ritmo cada vez mais rápido pelo próprio desenvolvimento da agricultura moderna e da concorrência da lavoura capitalista. 

O camponês francês tinha eleito Louis Bonaparte presidente da República; mas o partido da ordem criou o Império. Aquilo que o camponês francês quer realmente, começou a mostrá-lo em 1849 e 1850, opondo o seu maire ao prefeito do governo, o seu mestre-escola ao padre do governo e opondo-se ele próprio ao gendarme do governo. Todas as leis feitas pelo partido da ordem em Janeiro e Fevereiro de 1850 eram medidas confessas de repressão contra o camponês. O camponês era bonapartista porque a grande Revolução, com todos os benefícios que lhe trouxe, estava personificada, aos seus olhos, em Napoleão. Esta ilusão, rapidamente destruída sob o segundo Império (e, pela sua própria natureza, hostil aos Rurais), este preconceito do passado, como poderia ter resistido ao apelo da Comuna aos interesses vitais e necessidades urgentes do campesinato? 

Os Rurais — era essa, de facto, a sua principal apreensão — sabiam que três meses de comunicação livre da Paris da Comuna com as províncias levaria a um levantamento geral dos camponeses; daí a sua ânsia em estabelecer um bloqueio de polícia à volta de Paris, como para fazer parar a propagação da peste bovina.

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