Desde que se iniciou a ascensão eleitoral do Chega surgem diversas reportagens da imprensa nacional que tentam responsabilizar os pobres, a classe trabalhadora e a população rural pelo fenómeno. No entanto, o que nos mostram os dados é algo bem diferente e complexo. André Ventura obteve nas presidenciais importantes resultados em freguesias mais ricas. Foi um voto mais urbano que rural, mais a sul do país e no interior, do que no norte litoral. Ao contrário do Porto, a Área Metropolitana de Lisboa (AML) foi central para a grande votação da extrema-direita, aqui destacam-se as freguesias ricas, algumas das mais pobres e localidades periurbanas. E, nos locais da classe trabalhadora – com tradição de esquerda e com população negra ou cigana – o Chega teve resultados um pouco piores.
Os intelectuais marxistas como Leon Trotski, Clara Zetkin ou Antonio Gramsci, que viveram o ascenso do fascismo na Europa, ensinaram-nos algo que não devemos esquecer: o fascismo nasce das crises económicas, é financiado por ricos, tem na pequena burguesia a sua força motriz e pode arrastar setores da classe trabalhadora em empobrecimento. Por isso, hoje, mesmo que o fenómeno da extrema-direita atual tenha as suas diferenças do passado, não podemos esquecer o papel central da alta burguesia, dos pequenos proprietários e das classes populares marginalizadas para o ascenso do neofascismo.
Neste momento, já sabemos que quem financia o Chega são milionários corruptos ligados ao negócio das armas, aviação, banca, imobiliário de luxo, turismo ou indústria; sem esquecer o capital internacional que é injetado dos EUA através de César de Paço, o ainda cônsul de Portugal na Florida. Também conhecemos as aproximações de André Ventura (AV) a setores protomilicianos nas polícias, empresas de segurança e claques violentas. No entanto, ainda está por entender qual a composição social da maioria dos votantes e também dos militantes do partido. É também necessário referir aqui o papel central dos órgãos de comunicação social para o fomento do que está a acontecer, mesmo os que não são aliados da extrema-direita mas que vivem dos clickbaits. Acrescenta-se aqui igualmente, a forma suja como o neofascismo domina as redes sociais.
Em fevereiro de 2020 um estudo do ICS/ISCTE, sobre os votantes do Chega, deu-nos dados importantes. No entanto temos de ter em conta que há um ano o fenómeno ainda era um pouco marginal, havendo assim importantes diferenças no eleitorado atual. Os votantes do Chega, dizia a pesquisa, eram tantos homens como mulheres, atingia menos a população muito jovem ou mais velha, sendo que os principais votantes encontravam-se entre os 24 e 45 anos. Os seus eleitores tinham instrução acima da média: por exemplo, um em cada cinco votantes, tinha completado o ensino superior. Isto deita por terra a teoria que o voto em Ventura é pouco escolarizado. Ao que parece, há um ano atrás, o partido teria ainda pouco impacto sobre a pequena-burguesia(1), e quem mais se destacava eram empregados de escritório ou trabalhadores não manuais com qualificações (mas sem grande poder hierárquico ou recursos). O ano passado, já era mais fácil encontrar eleitores do Chega nas grandes cidades do que no espaço rural, destacando-se a Grande Lisboa.
Alguns dados sobre a votação no André Ventura nas presidenciais
O racismo e, principalmente o anticiganismo, têm tido um papel central para a grande votação no Chega. Por isso, é obvio que os eleitores deste partido são esmagadoramente brancos. Compreender isso é essencial para entender o voto de setores populares brancos que em nada beneficiariam do programa ultraliberal deste partido. O Chega é um fenómeno mais urbano do que rural, onde se destaca a Área Metropolitana de Lisboa. Sobressaem também as cidades do Algarve, do Alentejo, do Interior Centro e Norte do país, isto apesar do foco mediático em pequenas localidades rurais com casos muito graves no interior alentejano. Por agora, é também um fenómeno um pouco mais do Sul do que do Norte. Isto parece contraditório, já que existe um passado mais de esquerda e menos conservador no Sul, no entanto nada nos diz que não se estenda rapidamente para cima. A má votação de André Ventura no Porto, quando comparada ao resto do país, pode-se explicar por várias razões. Para além da cidade ter um historial de esquerda e luta operária, o Chega tem os seus alicerces iniciais em Lisboa e o seu líder é reconhecido como um beto da capital, provavelmente também demasiado envolvido com o Benfica. No entanto, atenção, na freguesia da Foz do Douro-Aldoar-Nevogilde, onde vive muita da elite da cidade invicta, AV teve 13,5%, muito acima dos 8,7% do resto concelho, representando um em cada cinco votos do Chega no Porto. Aqui é evidente o papel dos mais ricos na atual ascensão da extrema-direita. Quando o Chega construir os seus alicerces no norte do país (um processo que parece estar em andamento, como mostraram as reportagens televisivas), teremos um fenómeno ainda maior. E, também, se juntarmos a votação de André Ventura e Tiago Mayan, ficamos com resultados muito similares em Lisboa e no Porto: 18,2% e 16,8%, respetivamente.
Os dados que existem até agora também mostram algo muito importante, o André Ventura vai buscar votos principalmente ao PSD e CDS, ou seja à direita tradicional. A suposta transferência de eleitores do PCP para o Chega na margem sul do Tejo e no Alentejo, que o Rui Rio falava na noite eleitoral, é uma enorme mentira para sacudir água do capote.
Olhemos agora para alguns dados das votações presidenciais que nos podem revelar parte da realidade. Na capital, as maiores votações em AV foram nas freguesias da Estrela (15,4%), Santa Clara (15,2%), Belém (14,8%), Marvila (14,3%) e Avenidas Novas (13,9%). Primeiro, terceiro e quinto lugar para freguesias de gente rica, segundo e quarto para freguesias muito pobres. Isto provavelmente mostra os dois lados da moeda, os muito privilegiados e alguns setores mais excluídos brancos a votar na extrema-direita. O Concelho de Cascais também teve um enorme votação (14,5%), e aí ainda se destaca a freguesia de Cascais e Estoril (18,3%), um dos lugares mais elitistas do país.
Na Área Metropolitana de Lisboa, os resultados mais elevados na extrema-direita foram no Montijo (16,9%), Sesimbra (16,4%), Alcochete (15,8), Cascais (14,5%) e Odivelas (13,6%). Aqui destacaria o fenómeno de um concelho rico, vários periurbanos ou semirurais e um da periferia próxima. Por outro lado, os concelhos com menos votação na AML foram Barreiro (10,4%), Almada (11,1%), Oeiras (11,1%), Lisboa (11,8%), e Amadora (11,9%). Aqui sobressaem os concelhos com tradição de luta operária e com muita população negra/cigana; no caso de Oeiras, com setores intermédios muito bem estabelecidos. As 12 freguesias com votações mais baixas no André Ventura na AML foram São Vicente (7,9%), Santa Maria Maior (8,7%); Almada-Cova da Piedade-Pragal-Cacilhas (8,7%); Arroios (9,1%); Alto do Seixalinho-Santo André-Verderena (9,5%); Penha de França (9,6%); Misericórdia (9,6%); Gaio-Rosário e Sarilhos Pequenos (9,9%); Porto Salvo (10,2%); Ajuda (10,2%); Alcântara (10,3%); Barreiro-Lavradio (10,4%). Aqui juntam-se freguesias com forte tradição de esquerda, com bairros sociais e muita população racializada.
Há um outro fenómeno na AML que são os elevados resultados da extrema-direita em zonas periurbanas, ou seja em áreas mais distantes do centro, um pouco mais ruralizadas e com pouca população racializada. Por exemplo, no concelho do Montijo (16,9%), sobressaem os 25,6% da freguesia de Pegões, a maior votação de toda a AML. Em Palmela (13,4%), emergem os 17% da freguesia de Poceirão/Marateca. Por exemplo, no concelho de Sintra (13,9%), as freguesias com menos votos são as mais urbanas e da classe trabalhadora, como Cacém/São Marcos (13,4%) ou Massamá/Monte Abrão (12,2%); sendo, que, no lado oposto com mais votação, surgem as freguesias ricas, periurbanas ou semirurais, como Colares com 15,7% e São João das Lampas e Terrugem com 15,3%. Em Loures (13,3%), as freguesias com mais votos aconteceram numa das mais pobres, Camarate/Unhos/Apelação (16,1%) e uma periurbana, Fanhões (16%).
Olhando noutra perspetiva, se olharmos para todas as freguesias da AML com votação acima dos 14% no André Ventura (que foram 30), dividirmos em diferentes tipos e contarmos o número total de votos no Chega obtemos: a) freguesias com muita população rica (13 887 votos); b) freguesias suburbanas com muita classe trabalhadora e alguns setores médios (11 765 votos); c) freguesias da classe trabalhadora pobre (5 259 votos); d) freguesias periurbanas ou semirurais (8 226 votos); e) indefinidas (3 884) (2). Aqui destaca-se a quantidade de votos em freguesias ricas, onde sobressaem os 4973 votos em AV de Cascais/Estoril. Mas também sobressai a enorme votação em lugares da classe trabalhadora e setores médios como Algueirão-Mem-Martins, 2688 votos; ou freguesias da classe trabalhadora mais pobre como Marvila, com 2 035 votos. O neofascimo teve também muito boa votação em freguesias periurbanas e semirurais da AML, 11 das 30 que tiveram mais de 14%, no entanto elas representam um número de votos menor por serem zonas menos populadas.
Em vários distritos fora das grandes áreas metropolitanas vemos um fenómeno que é: em geral, quanto mais urbano maior percentagem de votos no Chega. Isso acontece no distrito de Faro, Beja, Portalegre, Castelo Branco, Guarda ou Bragança. No distrito de Faro, onde o voto em AV foi de 16,7%, foi em cidades centrais que isso mais se fez sentir. Lugares com história operária e pesca, tradicionalmente de esquerda, como Portimão e Olhão, tiveram 19% e 17,9%, respetivamente. E, por exemplo, Monchique que é contíguo a Portimão, rural e tradicionalmente bem mais à direita, teve apenas 8,3%. No entanto, Marcelo Rebelo de Sousa só alcançou 55% em Portimão, bem abaixo da média nacional, o que pode mostrar uma direita a radicalizar-se ou mais jovem; e, em Monchique, com população muito mais envelhecida, teve 68,2%, números acima da média nacional.
O perigoso ascenso da extrema-direita
O fenómeno Chega não está estabilizado e com os dados que temos ainda não é fácil fazer uma caracterização mais aprofundada dos seus votantes. No entanto, podemos tirar algumas conclusões: é um fenómeno que se expressa mais nas cidades do Sul e interior centro/norte. Isso mostra que o fenómeno pode crescer quando penetrar melhor nas zonas rurais, e em cidades como Porto, Braga ou Coimbra. A sua base eleitoral parece estar a crescer na burguesia e pequena-burguesia. Por exemplo, isso é uma das características do voto no Vox no Estado Espanhol, onde de forma geral os votantes neste partido de extrema-direita têm rendimentos acima da média do país. No entanto, pelos dados que mostrei é evidente a penetração do Chega entre setores de trabalhadores urbanos brancos. Na zona de Lisboa, para além de ser um fenómeno em freguesias muito ricas, atinge também algumas das mais pobres e muitas das periurbanas. Por isso, não devemos desprezar o fenómeno na classe trabalhadora, mas também não devemos esquecer o grande crescimento entre os setores mais abastados do país. Também não é um fenómeno que tenha arrastado a juventude e nem a população mais velha, que viveu o fascismo. Também é preciso quebrar um mito: não é a presença de população cigana, negra ou imigrante que leva a votações grandes na extrema-direita, estão aí os dados das freguesias para demonstrar o contrário, na verdade o central aqui é o imaginário racista. Deve-se destacar sim o papel central das comunidades racializadas para o voto antifascista, como aconteceu com os ciganos e negros nestas últimas eleições. Seria também importante entender qual é a influência do Chega entre as forças policiais e militares, onde têm surgido fenómenos de extrema-direita e representam 69 000 pessoas. Na França, por exemplo, sabe-se que existe um enorme voto de polícias no partido de Marine Le Pen.
Em Portugal, a decadência do capitalismo nacional, a perda de estatuto a nível global, o racismo sistémico, o longo e brutal colonialismo negado, o empobrecimento das classes populares e principalmente o ascenso da extrema-direita internacional são fatores centrais para o crescimento do neofascismo. Tendo em conta isso, a luta antirracista é hoje um combate central para esquerda; e, a proposta de medidas socialistas contra a crise que se aprofunda é fundamental. Nesse sentido, é necessário denunciar o racismo brutal da extrema-direita, o saudozismo da ditadura fascista de Salazar e desmascarar o projeto ultraliberal de André Ventura, que pretende acabar com o SNS, privatizar a Escola Pública, diminuir os impostos aos ricos e atacar os direitos da classe trabalhadora. No fundo, beneficiando ainda mais os milionários corruptos, nomeadamente aqueles que financiam este partido neofascista.
(1) Quando falo de pequena burguesia em Portugal estou-me a referir por exemplo a donos de pequenos negócios, pequenos proprietários rurais, pessoas com cafés, cabeleireiros, restaurantes ou lojas. Não devemos esquecer que num país como Portugal, sem uma estrutura económica poderosa, muita gente optou pelo seu negócio. Por exemplo, em 2018, 96% das empresas no país eram microempresas. Também não quero dizer que todas estas pessoas vivam à larga, na verdade diversos setores da pequena burguesia podem viver pior que outros assalariados, no entanto isso não lhes retira a relação conservadora com a economia e o resto da sociedade, sendo por isso alvos mais fáceis da extrema-direita. As organizações socialistas podem e devem disputar este setor.
(2)Mais de 14% votos em AV na AML. A) Freguesias com muita pop. rica: Belém (14,8%, 1218v); Estrela (15,4%, 1372v); Alcabideche (14,7%, 2538v); Cascais e Estoril (18,3%, 4973v); Colares (15,2%, 554v); Sintra (14,3, 1962v); Azeitão (14,2%, 1270v) (Total:13 887v). B) Freguesias suburbanas da classe trabalhadora e alguns setores médios: Algueirão-Mem Martins (14,2%, 3601v); Rio de Mouro (14,2, 2688v); Loures (14,8%, 1925v), Moita (14,2%, 1059v); Montijo e Afonseiro (16,7%, 2491v); (total: 11 764) (Total: 11 764v). C) Freguesias classe trabalhadora pobre: Marvila (14,3%, 2035v); Santa Clara (15,2%, 1261v); Camarate, Unhos e Apelação (16,1%, 1963v) (Total: 5259v). D) Freguesias periurbanas ou semi-rurais: Almargem do Bispo, Pêro Pinheiro e Montelavar (16,6%, 1206v); São João das Lapas e Terrugem (15,3, 1144v); Enxara do Bispo, Gradil e Vila Franca do Rosário (14%, 199v); Sarilhos Grandes (17,2, 206v); Atalaia e Alto-Estanqueiro-Jardia (15,0%, 287v), Pegões (25,6%, 272v); Samouco (16,9%, 236v); São Francisco/Alcochete (16,1%, 184v); Poceirão e Marateca (17%, 385v); Quinta do Conde (19,2%, 1958); Ramada e Caneças (14,5, 2149v). (Total: 8 226); E) Freguesias indefinidas: Pontinha e Famões (14,9%, 2149v); Casal de Cambra (14,9%, 681v); Alcochete (15,5%, 875v); Fanhões (16,0%, 179v) (Total: 3884).