A decadência do capitalismo nacional e o racismo sistémico são as bases do neofascismo

Ainda que previsível, o resultado de André Ventura no passado dia 24 abalou muita gente. Constatou-se que existe uma corrente neofascista em Portugal que arrasta centenas de milhares de votos. Abriu-se um debate sobre as causas deste fenómeno. Muitos, antes das causas, procuram as culpas, dando vazão não só a uma tradição judaico-cristã de culpabilização como a ajustes de contas sectários. Assistimos a antifascistas que gastam mais tempo a criticar a esquerda do que Ventura; a militantes de esquerda que se esquecem de responsabilizar Marcelo e a direita por terem normalizado o Chega; a quem culpe as insuficiências da chamada Geringonça pela surgimento do Chega e a quem, pelo contrário, assinale que foram os avanços da esquerda, em aliança com o PS, que radicalizaram a direita; há quem responsabilize aqueles que se mobilizaram nas ruas contra Ventura pela sua ascensão eleitoral…

Acredito que a avaliação política dos erros cometidos, inclusive à esquerda, é necessária. Mas quero começar pelo início. É útil um prisma marxista e internacionalista para destrinçar as causas do surgimento de uma corrente neofascista com peso de massas no quadro político nacional. Estas devem ser procuradas, antes de mais, na história e estrutura social e económica do país, na sua relação com o contexto internacional, em particular com a atual fase de reordenação geopolítica mundial. Só sobre esta base pode ser frutífero o debate sobre a política, sobre os erros cometidos e, sobretudo, sobre a orientação para combater o neofascismo.

Um fenómeno internacional

Um dos erros de quem procura explicar a ascensão de Ventura em base a aspetos políticos conjunturais é que, inevitavelmente, cai numa análise meramente nacional. A ascensão do neofascismo dá-se internacionalmente em contextos políticos distintos. Pelo que as características do Governo PS nos últimos anos certamente não bastam para explicar o resultado eleitoral de André Ventura.

Em França, o país europeu em que a corrente neofascista tem força há mais anos, foi sob governos de direita que ela irrompeu na cena política. Primeiro em 2002, quando Jacques Chirac estava no poder e Jean-Marie Le Pen obteve 17% na primeira volta das presidenciais; e depois em 2012, já com Marine Le Pen, após dois mandatos presidenciais de Sarkozy. É verdade que Marine Le Pen vence a primeira volta das eleições presidenciais de 2017, após um mandato de Hollande (PS). Mas em 2017 a esquerda não só não estava aliada ao PS como Jean-Luc Mélenchon protagonizou uma rutura pela esquerda com este partido, de onde surgiu a France Insumisse. Já durante o mandato de Emanuel Macron, cada vez mais radicalizado à direita, Le Pen venceu as europeias de 2019 e está neste momento em primeiro lugar nas sondagens.

Nos EUA, Trump vence em 2016 após dois mandatos de Obama. Mas para forçar a teoria de que foi a desilusão com a esquerda que abriu caminho a Trump seria preciso pintar Obama e o Partido Democrata como sendo de esquerda, coisa que não são. Pelo contrário, a radicalização à direita protagonizada por Trump é simultânea a uma radicalização à esquerda, protagonizada por Bernie Sanders. Será correto afirmar que a claudicação de Sanders ao aparelho democrata não ajudou a derrotar Trump, mas aí já não estamos a discutir a origem do neofascismo e sim a forma de o combater. Sanders poderia ter derrotado Trump mas não poderia ter impedido o surgimento do Trumpismo.

Outros países servem de exemplo para demonstrar que o neofascismo adquiriu peso de massas sem uma relação direta com o tipo de Governo – de centro-esquerda, com apoio ou não da esquerda, ou de direita – no poder. Em Itália foi em 2018 e 2019 que a Liga de Salvini cresceu vertiginosamente, após uma série de Governos do Partido Democrata. Já na Alemanha, a AfD faz um percurso semelhante durante os Governos da CDU de Merkel. No Brasil é certo que a desilusão com 13 anos de Governos PT forneceu terreno fértil para o bolsonarismo – mas ainda assim houve Temer entre Dilma e Bolsonaro. O rol de diferentes conjugações governamentais sob as quais o neofascismo ascendeu poderia continuar: Áustria, Suécia, Estado Espanhol, Finlândia, Filipinas, Índia etc. Aqueles em que existiam soluções governamentais comparáveis com a que vingou em Portugal nos últimos anos são ínfimos. Não significa isto que o balanço da Geringonça, e da esquerda que nela apostou, seja indiferente para entender o sucesso de Ventura. Significa, sim, que é um elemento de análise subsidiário, ainda que necessário, para explicar porque se consolidou uma força neofascista no nosso país. Aqueles que querem usar Ventura para martelar a esquerda não só não conseguem explicar os sucessos do fascista como dão por si a coincidir com ele no alvo para que apontam.

O nacionalismo e a decadência do capitalismo nacional

A tese que defendo é que o surgimento de uma corrente fascista com de peso massas no nosso país era, no atual contexto, previsível e inevitável. Portugal não é uma ilha, não havia razões para ficar imune à vaga neofascista global. Não havia política mágica da esquerda ou mesmo do centro político – que tem muito mais responsabilidades – que o pudesse impedir. Poderia (e pode) ser mitigada, contida, reduzida à sua expressão mínima, mas no atual contexto internacional dificilmente poderia não irromper. Aliás Portugal tem características particularmente propícias para o irrupção deste fenómeno.

A análise de um fenómeno complexo implica o estudo de várias determinações – causas digamos – muitas vezes contraditórias, em vários níveis de abstração. O surgimento de um partido, ou uma corrente política, que conquista uma base social e eleitoral ampla e relativamente estável, não pode ser explicado por fatores conjunturais. Os partidos não surgem como mero resultado da luta política conjuntural, correspondem, sim, a deslocamentos profundos na estrutura de classes de cada país. Isto não significa cair num economicismo mecânico, num materialismo vulgar que exclua a luta política e a subjetividade da análise. Significa partir para esse segundo nível de análise – o terreno da política – com base em pressupostos objetivos que o antecedem.

Isto posto, nem tão pouco quero esgotar este quesito, o de uma análise dos fundamentos tectónicos que expliquem o surgimento de uma corrente neofascista em Portugal. Alguns contributos que me parecem pertinentes já foram dados nesse sentido. Quero apenas assinalar três aspetos, ligados entre si, em que podemos encontrar as raízes do ultranacionalismo racista de que se alimenta Ventura e o Chega: 1) a decadência do status de Portugal no mundo, num contexto de acirradas disputas geopolíticas; 2) as particularidades da formação social do nosso país, marcadas por um prolongado colonialismo; 3) a pauperização das classes populares na sua relação com os dois fatores anteriores.

A decadência do status de Portugal no mundo, num contexto de acirradas disputas geopolíticas, é a base da vertigem ultranacionalista. A crise capitalista de 2007/8 iniciou um período novo no mundo. Uma das suas marcas foi ter acelerado a crise da ordem mundial assente na hegemonia Norte-Americana, alicerçada na aliança com a União Europeia e Japão. A hegemonia global é agora disputada com a China e combina-se com disputas regionais protagonizadas por potências intermédias – Rússia, Turquia, Irão etc. Com algumas exceções, como o Brasil ou a Índia1, o neofascismo irrompe com força naquelas antigas potências imperialistas cujo lugar na hierarquia mundial de estados se encontra ameaçado. Os capitalistas de cada um destes países perdem espaço no mercado mundial e começam a questionar as alianças internacionais e a “multilateridade” com que operavam até aí. Portugal não é exceção e setores do Capital luso também começam a pensar em como passar à frente dos seus aliados de ontem, na disputa por mercados. O “cada um por si” no terreno da economia global expressa-se como nacionalismo no terreno da política. Para esta crescente vertigem nacionalista de setores da burguesia concorre a destruição de grandes grupos capitalistas nacionais após a última crise e a perda de resquícios de domínio financeiro e político no exterior – veja-se a perda de espaço da finança nacional em Angola e a perda de poder de Portugal na CPLP. Mas esta vertigem nacionalista não percorre só a pequena minoria capitalista que mantinha algum poder imperialista (ainda que de terceira ordem). Ela estende-se por diversos tentáculos a outras camadas sociais: milhares de gestores, chefias intermédias, burocratas empresariais e suas extensas famílias vivem na sombra dos “Donos disto tudo”. Esta nata empresarial vê-se diminuída pela entrada de capital Chinês, Norte-Americano, Francês e Espanhol nas grandes empresas e bancos portugueses. Há também uma capa política associada aos capitalistas que mantinham interesses imperialistas externos que foi abalada neste processo. Todos têm motivos para sentir a pulsão nacionalista a percorrer-lhes a espinha e querem uma força política que a expresse. Uma parte do chamado estado profundo – nas polícias, nos tribunais, na diplomacia – certamente está a ser percorrida por essa vertigem nacionalista e saudosista, pois é parte de um Estado que está a perder no xadrez internacional. Por fim, esse sentimento expressa-se numa parte da intelectualidade que, sem assumir a adesão ao neofascismo, faz eco do seu ultranacionalismo. Este despontar nacionalista de uma fração da elite encontra aderência em camadas sociais que estão abaixo dela, sem a qual a corrente ultranacionalista não conseguiria expandir-se. Assinalo de seguida dois elementos que permitem essa expansão do ultranacionalismo na sociedade.

Portugal herdou uma formação social colonialista que resiste na antiga metrópole muito depois do fim do colonialismo. Portugal foi o primeiro império mercantil colonial-capitalista e último grande império colonial europeu a ser desmantelado. Foi também a primeira potência escravocrata moderna. Foi ainda dos países que mais trabalho escravo teve na metrópole. Tudo isso deixou até hoje um lastro ideológico racista, do qual o chamado luso-tropicalismo é a expressão acabada. Mas o “colonialismo das mentes” só se sustenta porque ainda encontra correspondência numa formação social racista, com fortes elementos de segregação racial e daquilo que poderíamos chamar “colonialismo interno”. A refração racial da divisão social do trabalho; a segregação, pela via da guetização habitacional, da população racializada; e a manutenção de dispositivos policiais e carcerários desproporcionais2 e marcadamente racistas são elementos de racismo sistémico que atravessam a sociedade portuguesa. Sob diversas formas, comunidades afrodescendentes, brasileiras, asiáticas, venezuelanas e leste-europeias são descriminadas no trabalho, na habitação, no acesso aos serviços públicos ou pela violência policial. O caso da comunidade cigana é particularmente agudo, deixando evidente um anticiganismo sistémico. Esta estratificação racista cria um sistema de desigualdade interno às classes populares, em particular através de uma dualidade de competição-exclusão no mercado de trabalho. Isto permite que a ideologia nacionalista e racista penetre fundo, mesmo entre setores desfavorecidos. Sectores brancos do proletariado e das classes médias pauperizadas, que nada têm a ganhar com a disputa do mercado internacional pelo capitalismo português, são cooptados para o projeto nacionalista por esta via. Esta estrutura social, associada a um universo ideológico racista, saudosista e nacionalista, compele o trabalhador branco, precário e explorado, e o pequeno empresário, esmagado pelo grande capital, a defender os parcos privilégios que mantém face ao trabalhadores racializados. Daqui decorre a permeabilidade de setores populares ao projeto neofascista, sobretudo as classes médias esmagadas e o proletariado isolado e sem tradição de organização coletiva.

A compressão das classes médias e o fim da ilusão da ascensão social, decorrentes da crise de 2008, faz o resto. Ainda que os fatores estruturais acima descritos já existam há muito na nossa sociedade, a expansão económica e a ilusão da ascensão social mitigavam o seu efeito político. Enquanto a burguesia, grande e média, encontrava nichos para a exportação de Capital e mercadorias, resistia à pulsão nacionalista. Enquanto as classes médias e o proletariado branco experimentavam uma lenta melhoria do padrão de vida, para si e os seus filhos, o racismo estava presente mas não determinava as preferências políticas. Com a crise isso mudou e as feridas de um capitalismo pós-colonialista decadente reabrem-se na forma de uma pulsão racista e fascizante. Na amálgama de diversos setores médios e proletários, uns pauperizados e outros marcadamente pobres, a tónica ideológica é dada pelos primeiros e reverbera um sentimento de cerco social: acima deles os ricos, fora de alcance, abaixo os trabalhadores racializados, com quem são pressionados a competir. A crise habitacional e dos serviços públicos, que empurra setores antes privilegiados a partilhar o espaço com os mais pobres e excluídos, acirra esse sentimento de cerco. A histeria ideológica contras “minorias”, o “politicamente correto”, a China, as vacinas e o ressuscitado papão socialista encontram então terreno fértil. Assim, as classes populares brancas, que experienciavam um privilégio relativo, associam a sua perda de status social à perda de status do país no mundo, caindo no nacionalismo. Associam a queda dos seus padrões de vida à competição dos trabalhadores racializados e imigrantes e aderem à pulsão racista. As bases materiais para que setores populares encaminhem a sua raiva contra o “outro”, interno ou externo, estão assim dadas.

Da análise ao combate

Estes vários fatores combinam-se e retroalimenta-se das mais variadas formas. São eles que favorecem a existência de um espaço político ultranacionalista e racista, saudosista de um passado que não existiu, com o qual Ventura dialoga conscientemente. A estes fatores outros poderiam ser acrescentados, tanto de ordem estrutural, sócio-económica, como de ordem ideológica, subjetiva e política – sendo que estes dois níveis de causalidade não são estanques e interagem dialeticamente entre si. Há ainda uma outra ordem de causalidade que podemos abstrair e analisar isoladamente, e que não abordei aqui: a correlação de forças entre as classes, no terreno nacional e internacional.

Com esta explanação quero apenas assinalar que há bases materiais e objetivas para o sucesso eleitoral do neofascismo. É evidente que podemos também acrescentar explicações de ordem política. Neste terreno, as primeira criticas devem ser feitas a quem normaliza Ventura, sejam os partidos de centro-direita e o Presidente da República, seja o aparelho judicial. Há também que apontar o dedo ao Governo, que não só não combate a ameaça fascista e o racismo sistémico, como mantém as condições sócio-económicas que favorecem o seu reforço. À esquerda também há criticas as fazer: a quem durante décadas mantém um discurso “patriótico”, do qual agora é vítima, mas também a quem não foi capaz de trazer as políticas antirracistas e anticapitalistas para o centro da agenda. A prolongada associação da esquerda ao Governo PS, naturalmente, concorre para a profundar estes problemas. Mas não há que ter a ilusão de que outra política garantisse a não existência de uma corrente neofascista com centenas de milhares de votos. Mais do que evitar a polarização política pela extrema-direita, a esquerda poderia, e pode, construir uma polarização oposta, que permita levantar uma alternativa ao centro e calar o neofascismo. Isso acarreta que se apresente como alternativa ao Governo e ao status quo.

Uma política correta pode travar a ascensão da extrema-direita e permitir um contra-ataque das forças da esquerda, da classe trabalhadora e dos movimentos sociais. Esse contra-ataque, a ser vitorioso, pode assestar um golpe mortal sobre o fascismo. Sendo que, para o fazer, será necessário um grau de de mobilização popular que colocará em cheque também o centrão. Dessa dinâmica pode decorrer uma alteração na correlação de forças entre as classes, desequilibrando toda a sociedade a favor de quem trabalha. Esse desequilíbrio abre a porta a mudanças sociais radicais, sistémicas, necessariamente anticapitalistas, que erradiquem as causas sistémicas da ascensão fascista. Trata-se de um horizonte estratégico, o que não significa que seja temporalmente longínquo, que parte de posições defensivas para abrir caminho ao contra-ataque e, deste, à ofensiva. Sobre o ponto de partida para essa estratégia já falámos aqui. A vitória é possível na medida em que saibamos de onde vem a força do nosso inimigo.

1Seria necessário aprofundar se o Nacionalismo Hindu de Modi pode ser inserido na mesma família política que Bolsonaro, Trump ou Ventura. Seja como for, as exceções brasileira e indiana podem eventualmente ser explicadas por um lado pelo seu papel de sub metrópoles regionais envolvidas também elas em disputas geopolíticas importantes, como pelo estrutura social extremamente desigual destes países, moldada pelo colonialismo, pela escravatura (Brasil) e pelo sistema de Castas (Índia).

2“Lembremo-nos que, em janeiro, o MAI anunciou que iria contratar mais dez mil polícias, isto num dos países da UE com maior percentagem de agentes e considerado o 3.º país mais pacífico do mundo. Portugal surge também como o 2.º da UE15 com as taxas de encarceramento mais elevadas e um dos que tem penas mais longas (32,4 face à média de 10,6 meses dos 47 países do Conselho da Europa, em 2018). É preciso perguntar porquê tanta força policial? E que tipo de sociedade é aquela em que a despesa pública com “segurança e ordem públicas” é 37 vezes superior à despesa com habitação e serviços coletivos (3272 milhões para 87 milhões de euros, em 2018)?“

Ilustração: “Cristo carregando a cruz” Hyeronimus Bosch.

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