Nota: Este texto é uma versão revista de uma parte do documento de Situação Política Nacional aprovado em novembro de 2020, em Reunião Congressual do Coletivo Semear o Futuro. Ele é, por isso, anterior à recente eleição para a Presidência da República, em que o partido neo-fascista Chega obteve 11,9%. Mais do que então, este documento mantém-se atual, como o demonstra o resultado eleitoral do Chega que já era previsível nesse momento.
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O crescimento da extrema-direita em Portugal é uma realidade e não se espera que o ano de 2021 altere esta situação. Para tal, ajuda o facto de Portugal ser um país com um passado colonialista, além de ter sido pioneiro e o maior sequestrador e traficante de pessoas escravizadas. A ideologia que predominou durante séculos em Portugal, e que ainda hoje permanece hegemónica, é a de que as etnias negras e ciganas são inferiores. Nos manuais escolares é glorificado o período em que Portugal era dominante no mundo. Muitos outros exemplos de racismo e anticiganismo sistémicos poderiam ser dados. Aliado a isto, a decadência de Portugal enquanto império que perdurou ao longo dos séculos e a sua cada vez maior dependência em relação a outros países, criam o terreno fértil ao crescimento da extrema-direita e do neofascismo. Classes médias pauperizadas, sectores isolados e desesperados da classe trabalhadora e capas marginalizadas da população identificam a sua perda de status social com a perda de status internacional do país. Essa é a base para a inevitável a ascensão de ideias ultranacionalistas. As classes médias-altas e sectores parasitários da burguesia não só partilham deste sentimento como vêm nele uma ferramenta para “disciplinar” as classes dominadas e impor uma lógica de unidade nacional, de forma a aumentar o patamar de exploração e competir com as burguesias internacionais. Não é mais do que a lógica expressa por Trump no slogan “make america great again”, aplicada à realidade nacional.
No entanto, isto não significa que seja uma inevitabilidade histórica a chegada do neofascismo ao poder. As condições objetivas assinaladas acima, junto com o contexto internacional, tornam inevitável o surgimento de uma corrente fascista com peso de massas – aliás, ela já existe. Porém, uma coisa é ela disputar 5% da população, outra é ter 20 ou 30%. Uma coisa é centenas de fascistas serem encurralados nas ruas por milhares de anti-fascistas, outra é acontecer o oposto. O choque é inevitável, a vitória está longe de estar determinada.
É possível barrar esse crescimento e a ida do Chega para o poder. Não esqueçamos que, ao invés de outros países, estamos num país onde existe uma esquerda forte, produto do período revolucionário de 1974. E a existência do PCP e Bloco de Esquerda permitem que partamos para o combate ao neofascismo numa situação vantajosa, ao contrário de países como Itália onde não existe uma esquerda com peso de massas ou dos EUA, onde a esquerda nem tem um partido próprio. Igualmente a existência de um crescente movimento antirracista e feminista, sobretudo nos últimos anos fornecem essas bases. A tradição de mobilização sindical e juvenil são outros exemplos.
Repetimos: não se trata de impedir o surgimento de uma direita neofascista com peso de massas, esse fenómeno já se concretizou e, no atual momento de decadência capitalista, era, em certa medida, inevitável. A destruição do fascismo só pode ser alcançada através golpes de força profundos, pela mobilização de massas e o confronto direto: vimos isso na revolução portuguesa ou na derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial. Porém, previamente, há que alcançar uma correlação de forças favorável a essa contra-ofensiva. Trata-se assim de discutir como impedir que o neofascismo, em particular o Chega, alcance o poder. Trata-se de não deixar que o seu surgimento, em larga medida inevitável, se transforme numa avalanche neofascista. É para discutir a melhor estratégia para o conseguir que expomos as ideias a baixo.
A necessidade de unir a classe trabalhadora
Neste contexto, tática da Frente Única ganha particular importância. Trotsky defendia a unidade de toda a classe trabalhadora para derrotar o fascismo nas ruas, usando inclusive métodos similares, mas no campo da esquerda, ao das forças fascistas. Para Trotsky , a unidade entre todas as forças da classe trabalhadora era a chave da vitória para derrotar Hitler nos anos 20 e 30 na Alemanha. Esta unidade tinha “por objetivo, em primeiro lugar, a defesa física das organizações da classe operária e o combate político-ideológico no seio das classes médias e setores “desclassados”. A única possibilidade de vencer o nazismo é o proletariado se apresentar perante toda a nação como uma força sólida, unida e decidida”.
No caso específico português, há várias diferenças com a década de 30 e com a Alemanha. Contudo, a chave da vitória sobre o neofascismo mantém-se: unidade da classe trabalhadora. Isto que significa uma frente entre BE, PCP, CGTP e Movimentos Sociais (Antirracistas, Feministas, Climáticos e LGBT). Esta unidade é possível de concretizar e existem exemplos históricos em que se efetivou e teve sucesso.
Também na década de 30, mas no Brasil, a chamada “Revoada Galinhas Verdes” ou a “Batalha da Sé” derrotou o fascismo nas ruas. Este episódio consistiu no “enfrentamento duríssimo de várias horas, entre os sindicatos e organizações operárias e de esquerda de todas as vertentes, com destaque para os trotskistas, contra os bandos fascistas da Ação Integralista comandada por Plínio Salgado. A coragem e determinação de comunistas, trotskistas, socialistas e anarquistas impôs uma derrota impressionante aos fascistas”. A Frente Única Antifascista (FUA) era composta por trotskistas, anarquistas, estalinistas e socialistas e conseguiu derrotar uma manifestação que pretendia ser uma demonstração de força dos fascistas. A derrota dos fascistas debilitou-os enormemente, ao ponto de os reduzir depois a uma participação eleitoral absolutamente minoritária.
Outro exemplo histórico em que se conseguiu travar na rua os fascistas foi em 1934, em França. Os avanços políticos das forças reacionárias no país chegaram ao ponto de milhares de fascistas tentarem invadir o parlamento francês, com armas, navalhas e bastões. Os fascistas protestavam contra a demissão do chefe da polícia de Paris (Chiappe), com quem tinham ligação, deixando vários mortos nos confrontos com a polícia. Perante a crescente ameaça fascista, surgiu na classe trabalhadora um impulso unitário, que obrigou à formação inicial da Frente Única e que teve como resultado um levante proletário poderoso que não só golpeou profundamente o fascismo como abriu caminho a um período de grandes conquistas sociais – as 40 horas e as férias pagas, por exemplo.
Também a unidade da classe trabalhadora em Portugal, através de uma Frente Única que trave o avanço do Chega não só é necessária como é possível. E a importância dessa frente não tem só o objetivo, extremamente importante, de defesa física e ataque físico aos fascistas para os desmoralizar e desmobilizar. Tem também uma componente político-ideológica de forma a desmontar os argumentos e as ideologias de André Ventura e do Chega. Por exemplo, ajudaria a demonstrar que o Chega não é antissistema, denunciando que dirigentes desse partido tiveram ligações ao BES ou que o próprio Ventura tem ligações a casos relacionados com os Panama Papers. Ajudaria a denunciar que o Chega defende a destruição do SNS e da educação pública em benefício dos privados ou que Ventura está na política há muito tempo e foi lançado pela mão de Passos Coelho. Todas estas denúncias já têm sido feitas. No entanto, se essa ofensiva propagandística for coordenada e feita de forma unificada por amplo leque de forças políticas e sociais terá um alcance muito maior.
Mas sobretudo, a Frente Única seria a forma de mobilizar nas ruas a imensa maioria social que não aceita a política do ódio e a destruição de direitos que Ventura representa. Imaginemos uma jornada de luta convocada pelo conjunto da esquerda, com Bloco e PCP à cabeça, pelas centrais sindicais, pelos movimentos anti-racistas, feministas e climáticos. Um mar de gente sairia à rua, ridicularizando as manifestações de Ventura, ínfimas ao lado desta força social, e pressionando o Presidente da República, os Média e os partidos do centrão a não normalizarem o Chega.
A Centralidade da luta contra as opressões
Só se combate o Chega, e o neofascismo em geral, dando centralidade política à luta contra o racismo, o machismo e a LGBTfobia. Uma parte da esquerda julga que o combate ao neofascismo se faz omitindo a luta anti-racista e o combate a todas as opressões. Alguns chegam a dizer que o crescimento da extrema-direita é culpa da esquerda, que combate as opressões e assim acicata o ódio racial. Este raciocínio é perigoso e errado sendo que, na verdade, dá-se precisamente o inverso. Quem não combate o machismo, a LGBTfobia e o racismo, está na verdade a poupar os neofascistas, e a perder a luta pela disputa das consciências da classe trabalhadora. É verdade que há sectores da sociedade que são abertamente fascistas e racistas e não podem ser disputados, apenas vencidos. Mas há um grande sector da população envenenada por estas ideologias reacionárias e cuja consciência pode ser disputada. Só assim se combate eficazmente o Chega, e não através da adaptação ao seu discurso.
Em certa medida, para derrotar o neofascismo devemos aprender com eles. As forças neofascistas, nomeadamente o Chega, conquistam sectores de massas sem procurar um discurso consensual. Pelo contrário. Para chegar à maioria da população começam por veicular um discurso radical que mobiliza uma base abertamente racista, misógina e LGBTfóbica. Formam assim uma base que sendo massiva, é minoritária na sociedade. Mas ao ser massiva, muito altiva e radicalizada, essa base social permite-lhes polarizar toda o cenário político. A partir dessa base ruidosa, conseguem arrastar sectores intermédios, que estão longe de ser fascistas mas são capturados por estas forças.
É preciso fazer uma política simétrica, à esquerda. Para conquistar amplas massas contra o neofascismo, o primeiro passo não é o de procurar convencer aqueles que seguem o Chega a deixarem de o fazer. Isso pode revelar-se frustrante e desmoralizador. O primeiro passo é o de mobilizar aqueles e aquelas que estão preocupados, e até assustados e paralisados, pelo crescimento da extrema-direita, e não sabem como reagir. Tratam-se de milhares de jovens e trabalhadores, de feministas, antirracistas, ativista LGBT’s, sindicalistas e outros. Estes, unidos, podem construir uma força bem maior e mais ruidosa que as centenas que (por enquanto) o Chega consegue colocar nas ruas. Tratam-se primeiramente de milhares de trabalhadores racializados, de mulheres trabalhadoras que querem combater a misoginia, das LGBT que não aceitam ser atacadas. Estas e estes podem ser a linha da frente do combate ao neofascismo. Porém, para as mobilizar e organizar é preciso colocar a luta contra o racismo, o feminismo e os direitos LGBT no centro da disputa política, com um conteúdo de classe e combatividade social.
Através da mobilização de vários milhares, de uma ampla vanguarda que encheu as ruas no 6 de junho, em vários dias 8 de março, nas greves climáticas e nas principais lutas sindicais, é possível, aí sim, arrastar uma base intermédia, massiva, que está a ser capturada com o Chega. Aí muitos vão inclina-se para o nosso lado. Outros, manterão as suas ideias mas em silêncio, na defensiva, com medo de as mostrar abertamente. O fascismo pode assim ser reduzido à sua expressão mínima – e aí esmagado pelos meios necessários.
Quem tiver a ilusão de disputar com o Chega centrando a sua política terreno da “anticorrupção” será derrotado. A esquerda que o faça não conseguirá vencê-lo e abdicará de mobilizar aqueles e aquelas que responderiam a um programa verdadeiramente de esquerda. É necessária uma política anticapitalista contra a corrupção, mas isso não substitui o combate frontal ao centro da política do ódio, em particular contra o racismo sistémico e o anticiganismo. Por isso devemos responder à polarização com polarização. O centro e a moderação não são o caminho para a vitória.
Naturalmente, usar a unidade de ação e a Frente Única para mobilizar os sectores mais predispostos a unir-se contra o fascismo, não significa abdicar de outras táticas. É obviamente necessário um programa anticapitalista contra a corrupção: fim dos offshores; taxação dos super-ricos; publicação das contas de grandes empresas e bancos; auditoria independente ao Novo Banco, etc. É também necessário denunciar a inação do Estado (Parlamento, Governo, Tribunais e Polícias) no combate à extrema-direita e às suas fações terroristas. Por fim, é necessário desmascarar o carácter abertamente Nazi de partes do Chega e seus satélites e colocar o resto da direita, disposta a aliar-se a estes partidos, em cheque, para dividir a sua base. Nada disto é incompatível com a tática da Frente Única. Pelo contrário, é a partir da união dos sectores mais conscientes e atacados pela extrema-direita que estas denúncias ganham uma plataforma ampla.
A capacidade de unidade das forças da classe trabalhadora, com os sectores racializados, as mulheres, a juventude e as trabalhadores LGBT na vanguarda é a estratégia para construir uma maioria social que encurrale a ascensão fascista. Essa mobilização pode construir a correlação de forças que permita não só assestar um golpe final ao fascismo como abrir caminho a um levante mais profundo, pela mudança social. Isso implica a maior intransigência na independência de classe: a união que propomos terá de ser independente dos Governos, sejam quais forem, assim como do aparelho de estado em geral. Não cabem na Frente Única as forças políticas que descarregam a crise nas costas dos trabalhadores nem será o seu papel sustentar qualquer governo. Ao mesmo tempo, a maior flexibilidade tática será necessária, para saber fazer alianças pontuais com todos os que possam ser úteis na luta contra o neofascismo – mesmo que de forma temporária e vacilante.
Saber construir um caminho de mobilização unitária independente, com os sectores mais oprimidos da classe trabalhadora na primeira linha, é aquilo que chamamos a Frente Única: o caminho para derrotar o fascismo. Saber fazê-lo sem cedências ao centrão e ao Governo, mas estabelecendo um leque amplo de alianças é essencial. Tal como o é ter uma postura crítica ao Governo sem abrir caminho à direita, que trará o neo-fascismo para o poder. Com inteligência, unidade, coragem e confiança, apenas e só, nas forças do mais explorados e oprimidos, iremos vencer.
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