Desastre é desistir do combate

Estamos a aproximar-nos da reta final da campanha eleitoral para a Presidência da República. É tempo de reforçar a esquerda, com ideias e confiança. Sobretudo porque o mundo não acaba dia 24 e este combate eleitoral é só o ponto de partida para as lutas que se seguem. Não é tempo para derrotismos e desistências – porém é isso que nos vem recomendar Rui Tavares num artigo hoje no Público.

Rui Tavares é dirigente do Livre, partido que apoia Ana Gomes. Mais Geringoncista que a Geringonça, a sua proposta de uma esquerda aliada ao PS não é de hoje. Se agora ele anuncia o “desastre” iminente para recomendar que a esquerda desista do combate, a verdade é que antes já fazia a mesma recomendação com argumentos diferentes.

É com base no legítimo receio de muita gente, face a um provável bom resultado de Ventura, que Rui Tavares insinua a proposta de que Marisa Matias e João Ferreira desistam a favor da sua candidata. Para o fazer relembra que foi essa opção – a desistência dos candidatos do PCP e da UDP a favor de Jorge Sampaio – que permitiu derrotar Cavaco Silva em 1996. Essa pressão arrogante sobre as candidaturas de esquerda, que já foi ensaiada por Ana Gomes em alguns debates, é triplamente errada. Primeiro: porque não é para levar a sério. Tavares sabe que isso não vai acontecer e quer, na verdade, pescar votos no eleitorado de Marisa Matias e de João Ferreira. É um truque.

Segundo: porque para o fazer, anuncia em plena campanha a derrota da esquerda e um grande resultado para Ventura. A comparação que faz é com o resultado que Jean-Marie Le Pen (o pai de Marine) teve em 2002, 17% na primeira volta. Ora, não há nenhuma sondagem em que Ventura fique perto desse resultado, muito menos que indicie a mínima possibilidade de uma segunda volta. Sob o argumento de combater a extrema-direita, Tavares empola o candidato fascista a resultados que o próprio tem vergonha de almejar em púbico. Tavares faz um favor ao inimigo e um desfavor à sua candidata. Não é com derrotismos que se vence na luta política – o Livre já o devia saber.

Terceiro: nada indica que a deriva para o centro-esquerda seja a melhor forma de combater o neo-fascismo. Rui Tavares tem de ir buscar um exemplo de 2002, porque sabe que os exemplos recentes da luta contra Trump e Bolsonaro lhe retiram razão.

Um debate semelhante ao que Tavares propõe deu-se no Brasil em 2018, quando parte da esquerda brasileira defendeu que o PT retirasse a candidatura de Haddad a favor do mais moderado Ciro Gomes, do PDT. Alegandamente, Ciro Gomes, seria melhor que o candidato do PT a convencer eleitores do centro e protagonizar a luta contra a corrupção. Não só foi ultrapassado pelo PT como, na segunda volta que opôs Haddad a Bolsonaro, Ciro Gomes desertou da batalha – algo que Ana Gomes não faria mas que seria a atitude provável da direita do PS, que a apoia. Outro debate que marcou a esquerda internacional foi sobre qual o melhor candidato para derrotar Trump em 2016, Bernie Sanders ou Hillary Clinton. Mais uma vez se alegou que a assertividade socialista de Sanders afastaria o eleitorado moderado. Mais uma vez errou quem o disse: a moderação de Hillary não tocou no eleitorado trumpista nem mobilizou os segmentos do eleitorado mais à esquerda. É certo que Ana Gomes não é uma Hillary Clinton, pois é mais aguerrida e mais à esquerda. Mas fica longe de ser quem, no nosso país, pode protagonizar uma vaga de fundo contra a extrema-direita. Isso é assim não tanto pela sua pessoa mas pela sua opção política de se apresentar com a herdeira do centro-esquerda e do legado do PS. Tal não invalida que pudesse ter sido útil uma convergência à esquerda. O que assinalo é que, no momento, essa convergência não existe e não pode ser substituída por um candidatura que não vai programaticamente mais além que a matriz social-liberal do PS.

O exemplo norte-americano

É interessante verificar que Rui Tavares prefere anunciar a repetição do “desastre” francês de 2002 do que usar o exemplo recente da derrota de Trump por Biden. Nos EUA, a esquerda do Partido Democrata, a começar por Bernie Sanders, cedo abdicou de um caminho próprio e apoiou Biden. Aparentemente este até seria o exemplo que melhor daria razão a Rui Tavares – e com ele não precisava de fazer o papel de profeta do desastre. Mas não por acaso, o historiador não recorre a este exemplo. Ainda bem, porque faria um desfavor a Ana Gomes, bem mais aguerrida e mais à esquerda que Biden. Mas sobretudo, a grande diferença é que a vitória de Biden foi o resultado de uma poderosa onda de lutas de rua, a começar pela luta anti-racista do Black Lives Matter. Foi também fruto do desenvolvimento de uma nova esquerda, ancorada na luta feminista, anti-racista, climática e por salários, que abriu caminho à derrota de Trump. Estabelecendo pontes entre as lutas na rua e a representação institucional, essa nova esquerda mobilizou o ativismo e assim levou às urnas o eleitorado que Hillary Clinton não convencera quatro anos antes. Foi o despontar de uma nova esquerda, com protagonistas como Alexandria Ocasio-Cortez ou Ilhan Omar que fez esse caminho essencial para derrotar Trump nas urnas. Aliás, nas eleições Europeias e Legislativas de 2019, o Livre também o tentou fazer – mas tudo terminou com uma brusca e desleal mudança de orientação. O que a derrota de Trump nos diz é que, mesmo que para derrotar a ameaça fascista, em determinados momentos a esquerda tenha de convergir com candidatos mais ao centro, isso não anula a necessidade de um caminho próprio. Um caminho à esquerda, que combine a ação de rua com a representação parlamentar, que dê centralidade à luta feminista e anti-racista e não ceda perante o extremo-centro – como o Bloco e Marisa não cederam perante o Orçamento de Estado para 2021 – , pode evitar o “desastre”.

Perante a ausência de um perigo real de uma repetição do cenário que Rui Tavares evoca – a segunda volta nas eleições presidenciais francesas de 2002 – o caminho nestas eleições é o de reforçar a esquerda e preparar um novo ciclo de lutas sociais. Pois será num novo ciclo de lutas, contra o neo-fascismo mas também contra as insuficiências do Governo do PS, que se construirão as alianças que vão travar a ameaça fascista e obrigar os ricos a pagar pela crise. Esse caminho não se faz com desistências nem com cedências ao extremo-centro. Faz-se afirmando uma esquerda de combate, ainda que disposta a fazer pontes – e é Marisa Matias quem melhor a afirma nestas eleições.

Perante o ataque misógino de André Ventura a Marisa Matias, Ana Gomes deu a cara e aderiu à onda de solidariedade #vermelhoemBelem. No mesmo dia, Rui Tavares preferiu anunciar o “desastre”, apontar baterias à esquerda e dar a batalha como perdida. Faz um desfavor a toda a gente. Ana Gomes merece apoios melhores.

Ilustração: “A Decalcomania” de René Magritte

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