Imaginem Março e um corpo de um homem nos seus 40, deitado numa das salas frias do centro de instalação temporária do SEF no Aeroporto de Lisboa, de barriga para baixo, algemado, com os pés atados por ligaduras. Inanimado depois de ter sido covardemente espancado sob a guarida do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de Portugal e pela PSP. Morto.
Da primeira vez que li a notícia eu sabia que foi Ihor Homeniuk, mas poderia ter sido o meu pai. Como poderiam ter sido tantos outros corpos, despidos de toda a sua humanidade, de pessoas que saem de onde nasceram para procurar uma vida melhor e se deparam com os resquícios de uma instituição ditatorial, com o filho varão da PIDE: o SEF. Ao que parece, até mesmo os mais liberais, defensores do estado das coisas e estruturação da sociedade baseada no cumprimento das leis dos grandes pela força do cassetete já compreenderam que o SEF não serve. O que não lhes passa pela cabeça é que não só um telefonema do Marcelo à viúva e filhos daquele homem não resolveria nada, como é redundante fundir quem assassinou Ihor com quem espancou Cláudia Simões.
Há alguns detalhes que escapam a quem julga que a proposta de fusão dos dois órgãos é solução. No momento da decisão, o atual responsável pelo Ministério da Administração Interna (MAI) e todo o Governo PS terá de ter em conta que 12 agentes da PSP estão indiciados no caso do Ihor. Terão de ter em conta as investigações conduzidas sobre a infiltração da extrema-direita na PSP, bem como sobre todos os processos imputados a agentes da “Polícia de Segurança Pública” por crimes de ódio. Terão que ter em conta o quão ineficaz é manter uma lei que criminaliza a imigração.
Tanto o pedido de demissão de quem tutela atualmente o MAI quanto o atraso de 9 meses de Cristina Gatões, então diretora do SEF aquando do homicídio, sabem a pouco. Se pudermos abusar aqui de recursos estilísticos, eu poderia facilmente comparar as medidas propostas como duas ou três borrifadas de um perfume velho no esgoto. Não chega a disfarçar.
Mais do que reestruturar: extinguir.
Creio que uma das várias reflexões conjuntas para um avanço igualmente conjunto da sociedade em rumo a uma realidade mais livre e isenta de violência sobre certos sectores de trabalhadoras e trabalhadores, é nos perguntarmos para quem serve o SEF.
O SEF não nos serve. Nem a mim enquanto imigrante bahiana, nem a nenhum outro imigrante pobre, nem ao conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras portuguesas, como já é de compreensão geral. Não pelo aspeto estético da mão que assina os documentos ou pela cara que aparece na imprensa. O SEF não nos serve porque é uma instituição baseada na necessidade de controlo de fronteiras e repressão da imigração recorrendo à criminalização e, como não se é de espantar, a critérios racistas e xenófobos para quem é pobre.
Se é certo que o tratamento dado a Ihor e a outros imigrantes pobres é substancialmente diferente do dado a quem tem possibilidade de pagar pelo Visto Gold. A própria existência de mecanismos legais que privilegiam o acesso aos direitos de cidadania com base no quanto pode a pessoa “investir” diretamente em Portugal já nos dá algumas pistas sobre para quem é guardada a mão pesada: para quem não pode pagar 500 mil euros.
Mas seria ingénuo considerar que os lucros da imigração seria só os 496 milhões de euros que entraram em Portugal em 2020 pela existência dos golden visa, ou que seria só o resultado das receitas geradas pelo trabalho de quem vive em Portugal “legalmente”. A criminalização da emigração, respetivas leis e estruturas que garantem sansões e o medo são parte indispensável na extração de maior percentagem de lucro sobre trabalho “ilegal” e redes de tráfico de imigrantes. A imigração “ilegal” não só dá ao patronato a possibilidade de extrair mais lucro do trabalho assalariado dessas pessoas por se isentar da obrigação de fornecer condições laborais menos precárias como ainda conseguem baixar o preço/valor da mão de obra de todo o mercado de trabalho. O racismo e a xenofobia são um negócio multibilionário!
Então, mais do que reestruturar formalmente o SEF ou a PSP, temos de pensar em mecanismos de os extinguir! De descriminalizar a imigração e de, no meio termo, levarmos de forma séria o debate sobre o passado colonial e ditatorial de Portugal, seu lugar de construção de um mundo racista e de uma identidade portuguesa igualmente racista.