Orçamento de Estado: a coragem de votar diferente

Parece que foi há um mês, mas foi há uma semana. O Orçamento de Estado para 2021 foi aprovado na generalidade. Teve apenas o voto favorável do PS. Passou graças à abstenção de PCP, PEV, PAN e das duas deputadas não inscritas, Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues. A direita votou contra. Por motivos opostos, o Bloco de Esquerda também. Essa foi a novidade. As linhas abaixo destinam-se a sublinhar porque foi correcta esta posição do BE.

Os comentadores, televisivos e facebookianos, que durante anos criticaram o BE por aprovar os Orçamentos do PS, criticam-no agora pelo inverso. Mostram que, se algumas vez apontaram críticas correctas, fizeram-no na mesma medida em que um relógio avariado está certo duas vezes ao dia. Os que vêm aqui apenas uma encenação, enganam-se. A política, sobretudo nos dias que correm, não é um jogo de cartas marcadas. Dentro de todos os partidos há diferentes sensibilidades, inclusive no PS e no BE, que perante diferentes estímulos da realidade geram respostas diferentes. Novos dirigentes têm novas posições e os abalos que vivemos e os que se antevêem não podiam não causar reacção dentro dos partidos. É verdade que o voto contra do BE viu-se facilitado pela posição do PCP, mas esta não estava assegurada à partida. Nem nada indica que se esta fosse diferente, o BE se absteria, ainda que a pressão para isso aumentasse. Todos estes factores contam, mas é superficial ver neles os únicos ou os principais para esta viragem à esquerda (e não à direita, como afirmam os cínicos!) do Bloco. Vejamos algumas razões mais substanciais que explicam a votação bloquista e demonstram que foi acertada.

Um Orçamento sem anticorpos

O economista Eugénio Rosa, numa análise detalhada, refere-se ao OE 2021 como um “Orçamento de Austeridade”. Embora possam ser palavras desadequadas, os argumentos são fortes: as pensões mínimas mantém-se congeladas, assim como os salários da Função Pública; a carga fiscal sobe acima do aumento do PIB, recaindo esse excesso sobre quem trabalha; o desemprego mantém-se (o que é provavelmente mais optimista que a realidade); dos 433.000 desempregados sem apoio, apenas 170.000 estão abrangidos pelo novo apoio extraordinário; o investimento público é quase nulo, longe de compensar o investimento negativo dos últimos anos. Mas há mais: o Conselho das Finanças salienta que provavelmente será preciso canalizar mais dinheiro para o Novo Banco e a TAP do que o previsto no OE, antecipando um Orçamento Suplementar, dentro de meses, que irá reforçar as transferências para os de cima, não para quem trabalha.

E depois há o SNS. O aumento do investimento é muito aquém do necessário. Além disso, não reverte em contratações de profissionais de forma permanente e mensurável. Nem na criação de carreiras dignas para os que já hoje estão na linha da frente, em particular técnicos e auxiliares. Além disso, o PS não investiu em anos anteriores, nem sequer cumpriu com muitas das promessas feitas sobre a contratação de mais profissionais. Basta lembrar que durante o ano de 2020 o número de médicos diminuiu, em plena pandemia! Não é de agora, mas no actual contexto é gravíssimo. O Bloco de Esquerda destacou este aspecto no momento de anunciar o voto contra, e bem. Se não houvesse mais nada, isto já justificava o voto contra.

É verdade que muitos dos factores que assinalamos são apenas a continuidade dos Orçamentos anteriores, aprovados por Bloco e PCP. É necessário um balanço sobre essas posições anteriores, mas não é disso que se trata agora. O cenário mudou, é hoje de crise profunda. Se votar contra o Orçamento era justificável no passado, a esquerda não se opor a ele é injustificável neste momento.

Um PS definitivamente preso à classe dominante

O Bloco votou contra após uma longa negociação, em que inclusive baixou algumas das suas fasquias. No caso do Novo Banco, em vez de insistir em que não houvesse mais transferências públicas para o mesmo, passou a exigir que, pelo menos, estas estivessem dependentes de uma auditoria independente às contas do banco. Era, de facto, o mínimo. Ficou patente a intransigência do PS em ceder, sequer, nesse terreno. Essa e outras intransigências saltam à vista: o caso da contratação colectiva, em que não aceita reverter a regra da caducidade, por exemplo. Fica patente o medo gélido que o PS tem de beliscar a classe dominante. Não apenas em tocar nos seus privilégios, mas em fazer algo que minimamente possa parecer que pondera fazê-lo. Pelo contrário, a todo o momento pretende provar que tal nem lhe passa pela cabeça. Só isso, mais do que as regras Orçamentais da UE, explicam que não invista no SNS: trata-se de uma política consciente para alimentar o lobby da saúde privada, essencial aos privilégios da finança nacional. A Geringonça viveu da ilusão de que o PS poderia fazer, pelo menos um pouco, diferente. Não pode e isso merece um voto contra.

Entrar num novo ciclo com o pé esquerdo

A possibilidade de uma aliança da direita nos Açores, o aumento vertiginoso dos casos de Covid-19, a possibilidade de novo Estado de Emergência e a tensão na eleição nos EUA fazem que o tema do Orçamento pareça longínquo. Mas na verdade, lançam uma luz sobre a discussão Orçamental. São, de várias formas, indícios de um novo ciclo de polarização a que Portugal não escapará. António Costa matou a Geringonça no início da legislatura, a pandemia e a crise destruíram as bases de um eventual ressurgimento da mesma. O voto do Bloco não inicia um novo ciclo, apenas o constata. Mais que isso: prepara-o.

Descolar do pântano do PS ajuda a preparar a esquerda para um ciclo mais duro de luta política e social, em que a polarização será uma marca inevitável. A esquerda não pode entrar nesse novo ciclo presa ao PS, ao buraco do Novo Banco e ao colapso do SNS. Se em anos anteriores isso foi perigoso, agora seria suicidário. Por isso foi tão importante o voto do BE contra o OE. Não há motivos para que a posição se altere na especialidade. Pelo contrário, ela pode e deve ser o ponto de partida para um novo ciclo da esquerda, social e política – não só do BE. Disputar a alternativa ao PS e potenciar o combate contra a direita necessita de uma alternativa que una a esquerda, o movimento dos trabalhadores e os movimentos sociais, nas ruas e não só. Unidade em torno de um programa de emergência que resgate a saúde, o emprego, a habitação e o ecossistema é o caminho a seguir. Negar o Orçamento do PS é um passo necessário. Podemos agora começar a preparar os próximos.

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