O fantasma da crise política paira sobre o país. O assunto foi trazido a debate há cerca de um mês, numa entrevista de António Costa. Segundo o primeiro ministro, caso não houvesse acordo à esquerda para aprovar o Orçamento, o Governo demitia-se.
Na última semana, o tema voltou à discussão. Tanto Marcelo como Costa dizem contar com esse cenário, na sequência da votação do Orçamento. Marcelo chegou a dizer que, se não houver acordo à esquerda, teria de ser a direita, a aprovar o Orçamento. Com esta tirada, Marcelo, o presidente-sempre-em-campanha, pressiona o PSD mas também a esquerda, acenando com a possibilidade de um “bloco central”. O PCP reagiu dizendo que não define as suas posições para agradar ao Presidente da República. Catarina Martins, do BE, disse que não cabia ao Presidente encontrar soluções, mas sim ao Parlamento. E José Manuel Pureza, também deputado do BE afirmou, com razão, que sem o Orçamento o país pode funcionar a duodécimos. Já Rui Rio respondeu a Marcelo que o problema não era com ele.
Está inaugurado o “jogo da batata quente”. O PS quer um cheque em branco da esquerda para Governar sem maioria, a direita aposta no “quanto pior melhor” e Marcelo tem de fingir ser um árbitro equidistante, pelo menos até às presidenciais. Para lá dos jogos táticos, em que é normal e aceitável que a esquerda entre até dado ponto, é preciso pensar qual deve ser a estratégia da esquerda.
De seguida, procuro contribuir para essa reflexão. Defendo que, perante a quase inevitabilidade de a crise política, o mais favorável para a luta da esquerda é que ela não se adie demasiado.
Uma crise mais que provável
O actual cenário torna muito provável uma crise de Governação. Por um lado, está já antecipada uma queda do PIB como não há memória. A subida do défice será igualmente monumental. É provável que, nos próximos meses, o desemprego atinja valores superiores aos do tempo da Troika. Em simultâneo, vivemos uma segunda vaga da Pandemia. Tudo isto configura um cenário propício a crises políticas.
Em todo o mundo, verificamos uma grande volatilidade política de que são principais beneficiários a extrema-direita e as forças neo-fascistas. Isso expressa-se na provável subida eleitoral do Chega, mas também na recente escalada de ameaças fascistas e racistas feita por grupos neo-fascistas que gravitam em torno deste partido. Não creio que a escalada fascista e a ascensão do Chega sejam imparáveis, mas é certo que elas terão algum fôlego no próximo período. Por um lado, esta polarização é, em si, factor de crise. Por outro, não é possível travar essa ascensão sem confronto, o que irá gerar tensões em todos os quadrantes políticos.
São estes os principais elementos que tornam uma crise política altamente provável no futuro próximo. A crise poderá expressar-se de várias formas. Uma hipótese provável é surgir nas relações entre a esquerda e o Governo. Isto é assim porque os quatro anos de “Geringonça”, ou seja, de Governação do PS apoiada por Bloco de Esquerda, PCP e PEV, deixaram lastro até hoje.
Se é verdade que a “Geringonça” não se manteve, também é verdade que não foi totalmente superada. Bloco de Esquerda e PCP, ao aprovarem ininterruptamente os Orçamentos de Estado do PS, colocaram-se numa posição de fragilidade estratégica. Remeteram-se durante demasiado tempo a uma política que substitui o confronto com o Governo pela pressão sobre o PS. Assim, passaram a imagem de que são partidos subsidiários deste. Por isso, para se libertarem desta posição, devem aceitar o ónus de uma crise política – ensombrada pelo regresso da direita ou o reforço do PS.
É um problema real que tem de ser enfrentado. O PCP já começou a fazê-lo. O Bloco ganha em não se atrasar. Não haverá nenhum momento ideal para esta movimentação, todos os momentos acarretam riscos. É verdade que, no curto prazo, tal pode acarretar alguma penalização eleitoral da esquerda – ainda que isso não seja garantido. Porém esse é um preço tático que é preciso pagar para recuperar a autonomia estratégica. Só assim se pode apresentar uma alternativa de esquerda à direita e ao PS, porque tal não é possível enquanto se aprova sucessivos Orçamentos de Estado.
Um risco calculado
Hoje, os riscos de crise política são menores do que Marcelo e Costa querem fazer querer. Nos últimos seis meses de mandato, ou seja até março, o Presidente não pode dissolver o parlamento. Entre janeiro e junho, Portugal terá a presidência da União Europeia, o que torna improvável que tal medida seja tomada. Isto atira umas eventuais eleições antecipadas para o segundo semestre de 2021, provavelmente após as eleições autárquicas e no contexto de um novo Orçamento de Estado.
Nesse momento já terá passado mais um ano de desemprego, pobreza e tensões sociais. Passar esses meses com a esquerda atada ao PS, e a direita e extrema-direita livres para surfar a onda, é demasiado arriscado. Se só nesse momento a esquerda abrir uma crise política, rejeitando o Orçamento, o ónus a pagar por uma ruptura com o PS será mais elevado. Para evitar esse ónus aumentado dentro de um ano, seria preciso não apenas aprovar o actual Orçamento, como dispor-se já hoje a aprovar o próximo. Esse sim, é um risco demasiado grande. Não há, portanto, argumentos razoáveis para adiar para 2021 a rejeição de um Orçamento do PS.
É melhor um risco calculado hoje do que um risco aumentado amanhã. Rejeitar o actual Orçamento permite à esquerda descolar do PS e preparar a ofensiva nas ruas e nas eleições em 2021.
Há também a opção de aguardar por um momento melhor, como o da apresentação de um Orçamento abertamente austeritário pelo PS, em que um voto negativo da esquerda fosse incontestável . Porém esse momento pode não chegar. Não porque o PS não prepare um forte ajuste económico-social, mas porque tudo indica que ele não virá pela via orçamental.
O perigo da direita é real
A principal vantagem do actual momento para operar um corte com o PS é o atraso da reorganização da direita. Hoje, não só não haveria eleições imediatas, como a direita não está capaz de passar ao ataque. O mesmo pode não ser verdade dentro de um ano.
Ainda que não seja daqueles que vêm a ascensão do Chega como imparável, é inevitável que ele cresça nos próximos meses. Isso irá dar um novo alento a toda direita. Por outro lado, o PS certamente se verá desgastado durante o próximo ano, o que poderá revitalizar o PSD.
Por todo o mundo, a esquerda tem subestimado a direita e especialmente o neo-fascismo. Cá, ainda vamos a tempo de não o fazer. O perigo de uma polarização rápida à direita é real e deve ser prevenido. Porque os exemplos internacionais mostram-nos que, apoiada nessa polarização, a direita pode rapidamente crescer, aliando o velho centro-direita ao novo fascismo. Não deixar a oposição ao PS nas mãos da direita é o primeiro passo para evitar o seu crescimento. O passo seguinte é o de apresentar uma alternativa à esquerda, que não poderá impedir a polarização à direita, mas poderá sim, ultrapassa-la, nas ruas e nas eleições.
Por uma alternativa unitária à esquerda
Os passos que proponho são cuidadosos e preventivos. Visam correr riscos hoje para evitar males maiores amanhã. Audácia é necessária, a par da inteligência tática e clareza estratégica.
Não é possível voltar atrás no tempo ao pré-Geringonça. Votar contra o Orçamento de Estado para voltar a uma oposição defensiva não basta. Ainda mais conservador, é achar que só é possível sair de uma posição de apoio crítico ao PS mediante uma maioria absoluta do PS ou um regresso da direita ao poder, que tornassem os votos da esquerda desnecessários. É certo que até hoje ninguém defendeu esta opção, mas a aprovação ininterrupta de Orçamentos aponta neste sentido.
Poder-se-ia argumentar que é útil sustentar o PS até que a esquerda obtivesse uma correlação de forças mais favorável. Mas, além de levar a uma diluição política (ou precisamente por isso), a manutenção da actual situação, evitando crises e aprovando Orçamentos, não melhora a correlação de forças. Esperar que a crise económica e social fortaleça automaticamente a esquerda é perigosamente inocente.
Faz sentido correr o risco de uma crise política se esse for um primeiro passo para apresentar uma alternativa de esquerda. É preciso um plano estratégico para derrotar o centro sem abrir caminho à direita.
Um programa audaz, para fazer o Capital pagar pela crise, responder à crise climática, defender o emprego e mobilizar a classe trabalhadora na sua diversidade, é necessário. Uma articulação à esquerda, em que Bloco de Esquerda e PCP têm um papel central, mas onde entrem também outros actores, é possível. Com base nisso, disputar a hegemonia nas ruas e virar a discussão política nacional para a defesa do SNS, o investimento no emprego, o combate ao machismo ao racismo e às alterações climáticas, pode ser feito.
Uma aliança séria à esquerda nunca foi tentada. A ideia precisa de ser levantada, antes de mais, para poder fazer caminho. Lembremo-nos que uma solução como a Geringonça também era tida como impossível. A simples ideia de unidade à esquerda terá um efeito mobilizador e todos os protagonistas – mesmo os mais empedernidos – terão de dar resposta. O centro político ficará suspenso no ar e a extrema-direita perderia a força de marcar a agenda política.
Uma convergência da esquerda, nas lutas e na disputa política e eleitoral, pode baralhar o tabuleiro político e colocar o movimento popular na ofensiva. Pode parecer uma estratégia improvável. Porém, mais improvável é vencer sem estratégia.