Está em voga ouvirmos por aí que a “família tradicional” está sob ataque. Não é assim tão pouco recorrente ouvirmos um Bolsonaro, um Trump, um André Ventura e seus aliados bradarem que é necessário proteger a todo o custo essa tal instituição que seria esse tal modelo de família. Seria muito fácil apontar o dedo a essas pessoas e discurso com o argumento de que são moinhos de vento, seria fácil demais mas também seria equivocado desmerecer esse fenómeno dizendo que estão a tentar defender algo que nunca existiu nos termos que os conservadores narram. O que torna esse debate tão importante é reconhecer o carácter ideológico e estrutural que joga o núcleo familiar heteropatriarcal, cisnormativo e compulsoriamente monogâmico (para as mulheres) na manutenção de relações de produção de mercadorias e reprodução de força de trabalho. A unidade mais básica da organização da elite é exatamente ela: a família idealizada e imposta para servir ao propósito nefasto de produzir bebés a custo 0 para quem os irá explorar num futuro não tão distante, dependendo da legislação vigente em cada momento e também das necessidades materiais dos intervenientes.
Para aqueles que não estão familiarizados com o processo, trago novidades: é verdade, as crianças não se criam sozinhas. Uma gravidez e uma recém-nascida carecem de estrutura, de casa, de tempo de descanso, de alimento, de roupas, de cuidados médicos, de cuidados emocionais e tudo isso é imprescindível para o desenvolvimento de um ser humano funcional, capaz de iniciar sua vida enquanto trabalhadora cedo o suficiente e para se reformar demasiado tarde.
Nesse sentido, em momentos de agudização de crises do capitalismo, como a que vivemos já há alguns anos, põe em evidência não só as fragilidades do sistema capitalista mas também as suas verdadeiras intenções e nos demonstram como eles se agarram ao seu projeto de sociedade consolidado, entre outras coisas, nessa romantização do trabalho doméstico, associando a laços afetivos quando na realidade estamos a falar da garantia de manutenção da força de trabalho e reprodução da mão de obra a custo 0 para quem nos explora mas a um custo insuportável para nós, mulheres, pessoas racializadas e LGBTIA+ mas não só, perdemos todas e todos. E eles estão dispostos a defender essa agenda assassina a todo custo porque essa é a forma mais elementar da organização da classe dominante. Nem que defender implique matar, mutilar, esterilizar, humilhar, convidar a sair do país, criar campos de concentração e falsificar assinaturas.
A todo custo? A todo custo.
Não é novidade se eu disser que, historicamente, os partidos e organizações fascistas e suas variantes servem de plano B para execução de uma agenda de manutenção dessa tal ordem social que eu narrava ali em cima. Os representantes políticos das alas mais conservadoras ganham espaço sempre que os aliados mais brandos das elites não conseguem garantir as condições exigidas para extração de lucro. É nessas alturas que muitas das conquistas mais arduamente alcançadas começam a ser atacadas, exatamente porque são um empecilho directo na concretização de uma sociedade moldada pela e para a extração de lucro ao mais baixo preço para ser acumulado por alguns poucos. É nesses momentos que voltam os ataques sobre autodeterminação de género, sobre aborto, sobre afeto entre pessoas do mesmo sexo. Por isso tudo, na óptica de quem vive para nos explorar, não sai em conta. Mesmo sendo o cálculo complexo, compreendemos que a minha liberdade de não participar na máquina de produção de bebés a baixo custo interfere directamente na fixação do preço da força de trabalho e produção de mercadorias.
É isso que o Chega representa com as suas propostas de criminalização do aborto e castração compulsória de mulheres ciganas, o plano B da elite: retrocesso. Mas uma terceira via é possível. Uma onde não estejamos nem presas à agenda de um PS cuja prioridade não é quem trabalha e nem limitadas pelo receio de ter que viver num Portugal e mundo esmagado pela bota militar e conservadora da elite.
Defender a quem trabalha na rua, no parlamento e em todas as outras instancias com força que garanta a execução de um programa emancipatório, que defenda o direito ao aborto livre e gratuito, que implemente redes de creches públicas, que garanta condições de trabalho para todas aquelas que trabalham no sector dos cuidados, que garanta financiamento para o SNS e escolas, que não feche os olhos às necessidades de direitos das emigrantes, negras, ciganas e pessoas LGBTIA+. Enfim, que combata os conservadorismos, neofascismo e investidas das elites com uma visão de uma sociedade melhor. Com um projeto de sociedade emancipada, de seres humanos iguais em direitos e acesso a meios, em equilíbrio com a natureza e com poesia também, porque não? A batalha é dura, a sensação de frustração mói, o medo pode paralisar mas há ainda possibilidade de vitória sobre essas forças conservadoras. Ainda há esperança.
“É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”
– Drummond de Andrade – A flor e a náusea
Bárbara Góis