A ascensão do Chega representa a mais importante alteração do panorama político dos últimos anos. O palco parlamentar permitiu a André Ventura envenenar o debate político com as suas tiradas racistas contra os ciganos e os imigrantes, o seu desprezo pelos pobres e ódio ao legado democrático do 25 de Abril. Por outro lado, e para desânimo de tantos na esquerda, a sua ascensão parece imparável à medida que as sondagens indicam o crescimento do apoio eleitoral do Chega. Não é essa a perspectiva do nosso colectivo. Entendemos que é possível e necessário fazer parar André Ventura se não quisermos, em poucos anos, ter de nos defrontar com um partido fascista das dimensões da Frente Nacional (FN) em França ou da Alternativa para a Alemanha (AfD). Evidentemente, nenhuma dessas forças é invencível, e embora grandes, também já foram do tamanho do Chega. Seria, portanto, avisado enfrentar o problema agora e não mais tarde.
Uma das questões problemáticas na luta contra o Chega é entender a sua natureza: populista de direita, extrema-direita, neo-fascista, pós-fascista, cada classificação poderá ter como consequência uma estratégia política diferente. Em nosso entender, o Chega é um projecto fascista, mas de um fascismo modernizado, adaptado às condições actuais, seguindo as linhas dos seus congéneres europeus, como os já citados FN e AfD ou a Liga, do italiano Mateo Salvini. Este artigo pretende apenas dar um contributo para essa compreensão e avançar com algumas ideias sobre como combater o Chega.
Algumas características do fascismo e do fascismo português
Quando se discute a natureza política do Chega e partidos semelhantes pela Europa, uma das maiores causas de confusão, é a ambiguidade do seu discurso, abeirando provocatoriamente o racismo e o autoritarismo, mas guardando-se (quase sempre) de deslizes para um discurso explicitamente fascista. Por outro lado, a aparência convencional dos seus líderes, o distanciamento face à simbologia e métodos organizativos do fascismo clássico, contribuem ainda mais para essa confusão, uma vez que se torna impossível fazer aquela associação imediata, visual, que poderia facilmente esclarecer multidões acerca da verdadeira natureza desses projectos. Esta ambiguidade é propositada e é uma adaptação necessária do fascismo às condições actuais. No nosso site, publicámos recentemente um artigo de Mark L. Thomas que analisa os movimentos fascistas do século XXI e cuja leitura recomendamos.
No artigo citado, Thomas expõe as características fundamentais do movimento fascista dos anos 20 e 30 do século XX com base nas análises de Trotsky, que à época acompanhava o desenvolvimento político da Europa como exilado e sem qualquer capacidade de intervenção.
O fascismo é uma forma extremada de contra-revolução, que no século XX tinha como objectivo esmagar todas as formas de organização dos trabalhadores. Fê-lo apoiado num movimento de massas que mobilizava acima de tudo sectores pauperizados das classes médias. Embora recorresse a uma linguagem revolucionária, essa retórica não passava de um disfarce. Chegados ao poder, os fascistas sempre se puseram do lado das velhas classes possuidoras e defenderam os seus interesses.
Os movimentos fascistas modernos constroem-se com base em versões revistas e actualizadas destas características. O fascismo moderno consolida-se nas sociedades europeias ocupando parte do vazio político deixado por décadas de neoliberalismo e da crise que lhe sucedeu. O seu projecto é adaptado às circunstâncias actuais. Não tem em vista a tomada imediata do poder com o apoio de milícias armadas de braço estendido, pretende sim tornar-se uma força incontornável na direita, trazer para o centro do debate político as suas ideias racistas, xenófobas e autoritárias. A crise económica vai aprofundar-se as a agitação social vai surgir mais tarde ou mais cedo. O fascismo actual pretende consolida-se na nossa sociedade para poder intervir decisivamente quando a situação o exigir. Para que isso seja possível, tem de ir construindo um movimento que possa ocupar as ruas. Mas para já as circunstâncias ainda não lho permitem, mas dão-lhe espaço para um combate de ideias, posto em prática através de uma retórica anti-sistema, um discurso dual, ambíguo, que mobiliza sectores descontentes ao mesmo tempo que arregimenta a extrema-direita mas evita entrar em conflito aberto com os poderes instituídos. Todos os partidos da extrema direita europeia (a FN, a AfD, a Liga, o FPÖ da Áustria, entre outros) têm um núcleo duro fascista na sua liderança. Mas esse núcleo duro fica escondido pela ambiguidade do discurso e pelo apoio popular que consegue arregimentar. Tudo isto torna o fascismo moderno uma força mais difícil de identificar mas não menos perigosa que o fascismo do século XX.
André Ventura tem construído o Chega segundo estas linhas, e para as compreender é necessário observar o que se passa nos partidos fascistas da Europa. O Chega é tributário do conhecimento acumulado nas últimas décadas pelos fascistas europeus, que desbravaram o caminho da reconstrução do movimento em condições muito diferentes dos seus antecessores da primeira metade do século XX. Essa é, em parte, uma das explicações do rápido crescimento do Chega. Mas isso só por si não explica tudo. A crise económica que afectou Portugal ao longo de quase uma década, a incapacidade de resposta do Governo e da União Europeia, abriram o primeiro espaço para a emergência de um discurso xenófobo, populista e autoritário. A actual crise económica aberta pela epidemia de COVID-19 veio acentuar as dificuldades de numerosos sectores da população. Os pequenos negócios foram duramente atingidos, uma vez que as medidas de combate à pandemia levaram ao encerramento de cafés, restaurantes, pequeno comércio e indústrias, muitos deles de forma definitiva. A popularidade do discurso populista de Ventura entre esses sectores é um exemplo da força material das ideias1. As propostas do Chega dão resposta aos temores de uma classe média permanentemente ameaçada com a pauperização e o declínio social e que se sente desprezada pelos grandes, pelo grande capital e pelas instituições da República.
Por último importa ter em conta duas questões relacionada com a experiência portuguesa com o fascismo. A primeira questão prende-se com a experiência da implantação do regime fascista em Portugal no século XX. Ao contrário de países como Alemanha e Itália, em que movimentos de massas fascistas, violentos e plebeus, chegam ao poder e estabelecem alianças com a grande burguesia para dirigir o estado, em Portugal é a direita conservadora tradicional que se converte ao fascismo, comandando ela própria o processo de liquidação do estado liberal ao mesmo tempo que submete à sua direção os movimentos fascistas2. Essa experiência do Estado Novo tem marcado todas as correntes relevantes da extrema-direita portuguesa no pós 25 de Abril. Uma outra corrente, marginal, é a do nazismo, ou neo-nazismo, que enveredou pela violência racista de rua e pela criminalidade como forma de organização e que tem tido muito mais dificuldade em reciclar a sua imagem para ganhar algum espaço político. É nestes meios, e entre estas experiências passadas e recentes que o Chega se tem construído.
A segunda questão tem a ver com os resquícios do Estado Novo no Portugal contemporâneo. Seria ilusório pensar que o fascismo português segurou o poder durante 48 sem um forte apoio social. O grande capital português apoiou fortemente o Estado Novo e colheu dele inúmeros benefícios (proteção alfandegária, apoios do Estado, repressão do movimento operário…). Os latifundiários do Alentejo e Ribatejo, obtinham do Estado Novo a proteção do seu regime semi-feudal de exploração do trabalho. Hoje, muitas destas famílias voltaram a reaver as suas terras, algumas delas conseguiram reconstruir os seus negócios em torno da modernização da agricultura, da pecuária, do turismo ou da tauromaquia. Outro sector que tinha um estatuto privilegiado na ditadura era a Igreja Católica. Existem ainda hoje na nossa sociedade bolsas de saudosismo fascista. Estes sectores distribuíram-se politicamente pelo apoio ao CDS, PSD e PS, mas poderão reagrupar-se em torno de André Ventura.
Publicaremos nos próximos dias a segunda parte do presente artigo
Notas:
- A expressão é de Fernando Rosas, in Salazar e os fascismos, ensaio breve de história comparada, Tinta da China, Lisboa, 2019;
- Ibidem., p. 139 e seguintes.