Um texto de um homem branco, heterossexual e europeu
O carácter do trabalho e a definição da classe trabalhadora revelam-se as principais questões para qualquer organização política que se reivindica de Esquerda. Não sendo pontos de respostas consensuais, estas originam consequentemente diversos pontos de vista e tácticas. No sentido de contribuir para o debate, é preciso reflectir sobre o que é hoje a classe trabalhadora e onde se encontra, pelo que constataremos que as respostas a estas questões são bastante semelhantes e remetem para o âmbito da consciência.
O conceito de trabalho, ou melhor, da venda por parte de um(a) trabalhador(a) da sua força de trabalho em troca de um salário, é universalmente reconhecido pela classe trabalhadora, mesmo que não o faça do ponto de vista intelectual ou teórico. O facto do Marxismo se debruçar sobre esta problemática, com o objectivo de a compreender e não de a exaltar, pode levar a que mais ou menos conscientemente a três erros. Primeiro, a idealização do trabalho como aquilo que nos separa dos animais, associada à exaltação da figura do trabalhador(a) que trabalha até à reforma para depois ver o seu esforço recompensado; segundo, considerar que a exploração operada pela burguesia capitalista pode ser combatida unicamente com reformas laborais ou puramente económicas, fazendo concluir que o trabalho com direitos deixa de ter um carácter explorador; e terceiro, a distinção estrita e equivocada entre o trabalhador naturalmente consciente da sua classe e o pequeno-burguês.
De facto, o que naturalmente nos separa dos animais é que somos capazes de desempenhar um conjunto de tarefas e actividades com instrumentos progressivamente mais complexos e de contribuir para o desenvolvimento social, de forma a garantir a integridade e a subsistência da comunidade e de nós mesmos. O trabalho assalariado pago pela classe dominante aproveita-se unicamente destas capacidades e da evolução tecnológica. Necessitamos portanto de vê-lo como algo artificial à condição humana, o que porém não invalida que a esmagadora maioria dos seres humanos se assuma como parte da classe trabalhadora, com todas as suas subjectividades. Neste sentido, a actividade sindical é por si defensiva, isto é, procura preservar um conjunto de direitos e benefícios concedidos pelo patronato e pelas democracias liberais através de reformas, que podem ser revogados a qualquer instante. Não querendo subestimar o sindicalismo, esta é uma actividade reformista cujas vitórias, mesmo de sindicatos combativos e independentes, necessitam do aval tanto do patronato como dos governos burgueses. Em última instância, a luta sindical e política restrita a medidas puramente economicistas não desenvolve a consciência dos/as trabalhadores/as, mas atira-os para o campo do consumidor.
Marx estabeleceu, desde o início, uma distinção entre a situação objectiva de uma classe e a consciência subjectiva dessa situação, isto é, entre a condição de classe e a consciência de classe. Por outras palavras, a condição de classe não implica necessariamente a consciência. As classes sociais são caracterizadas pela posse e pelo controlo dos meios de produção de riqueza ou pela exclusão dessa posse e desse controlo. Porém, a consciência de classe requer o conhecimento do nosso papel no processo produtivo e uma organização política para uma defesa consciente dos interesses da classe. Se quisermos aprofundar, se a condição de classe burguesa se define pela posse dos meios de produção, a consciência da classe trabalhadora forma-se não só pelo reconhecimento da importância dos rendimentos do trabalho para a sua subsistência, mas também pela percepção das extensões criadas pela burguesia capitalista em todos os aspectos da vida quotidiana, como o pagamento da renda da casa ao senhorio ou da conta do supermercado.
Marx considera que a formação da consciência da classe trabalhadora desenvolve-se no confronto político com a burguesia, inicialmente limitado aos locais de trabalho e às lutas sindicais, que depois se ampliou e culminou em exigências políticas expressas por partidos políticos. À luz da actualidade, julgo ser preciso actualizar esta visão. Se anteriormente a luta sindical era considerada a antecâmara da luta política, perante a actual fragmentação da estrutura produtiva, o enfraquecimento das estruturas sindicais tradicionais, a tímida afirmação daquelas alternativas e a maior centralidade das questões subjectivas da própria classe trabalhadora, temos de priorizar a luta política como o meio historicamente provado de tomada e desenvolvimento da consciência de classe, assumindo aquelas mesmas subjectividades, e levá-la até aos sindicatos. Reflitamos assim sobre a falsa distinção entre o/a trabalhador(a) sindicalizado naturalmente consciente da sua classe e o trabalhador pequeno-burguês. Actualmente qualquer trabalhador(a) não adere a um sindicato para passar a ter consciência de classe, adere porque já a assumiu no seio da luta política. Em poucas palavras, os trabalhadores não se manifestam unicamente nos sindicatos e locais de trabalho, primeiramente pelo facto de não estarem aí permanentemente, mas também por sofrerem todo um conjunto de pressões fora deles. Admitindo que a maioria dos/as trabalhadores (as) não está nos sindicatos, temos de ir ao encontro de trabalhadores sem consciência de classe, sem tomarmos a sua ausência como sinónimo de consciência pequeno-burguesa.
Tal como a burguesia, a classe trabalhadora sempre foi bastante diversificada. Marx tem mesmo a noção de que a compreensão e a defesa dos interesses comuns da classe podem entrar em conflito com os interesses particulares de certos trabalhadores ou de grupos de trabalhadores. Se até meados do século passado o trabalhador fabril branco, heterossexual e europeu era a figura associada à Esquerda mais combativa, assistimos hoje, por força das crises, da precarização e dos ataques da Direita mais reaccionária, à ascensão dos movimentos negros, feministas e LGBTQI+, compostos por bastantes jovens e oprimidos/as, que se colocam na vanguarda e chocam inclusivamente com as tentativas mais ou menos conscientes de preservar a anterior ordem centrada no homem branco mais privilegiado, nem que seja pelo facto de não sofrer racismo, machismo ou homofobia. Neste sentido, uma mulher negra não se mobiliza da mesma forma que o trabalhador branco.
Surgem então dois campos artificialmente colocados em oposição – o “obreirismo” e o “identitarismo” – em resultado deste conflito. Uso as aspas propositadamente, pois não estamos a falar directamente sobre estes conceitos. Os “obreiristas”, ao afirmar que apenas os trabalhadores podem conduzir a luta pela mudança social, rejeitam o “identitarismo” ao associá-lo directamente ao reformismo, ao individualismo e às influências burguesas. Concluímos assim que nos movimentos identitários, mesmo existindo trabalhadores (as), estes/as não estão alinhados com os interesses da sua classe por se movimentarem com outras tendências e serem permeáveis às suas influências. Isto é irónico, dado que assim fortalecem aquilo que pretendem combater. Na realidade, o “obreirismo” serve de fachada a parte da Esquerda e a muitos trabalhadores brancos para combater a afirmação da política “identitária” e impôr a sua visão conservadora e limitada da classe trabalhadora. Mesmo considerando que o “identitarismo” pode ser dominado pelo reformismo, os “identitaristas” revolucionários não rejeitam a consciência de classe. Se os “obreiristas” privilegiam o meio laboral como espaço de construção política, construindo eles próprios uma identidade do trabalhador(a), os “identitários” apenas tentam com que os/as trabalhadores/as presentes nos movimentos assimilem a consciência de classe através de características compartilhadas, nomeadamente a etnia, género e/ou orientação sexual, todas motivo de exploração e opressão no âmbito do capitalismo e que nomeadamente os sindicatos tradicionais falham em abordar. Se queremos a unidade da classe, esta não é possível se a tomarmos a parte como o todo, por mais contraditório que possa parecer. Se assim acontecer, teremos a Esquerda a discursar somente para uma parcela da classe e a permitir que primeiramente os sectores mais dinâmicos da classe sejam ou capturados pela burguesia ou quebrados pela reaccção de Direita, para depois ser derrotada por completo.
A extrema-direita afirma-se como altamente identitária e até atractiva junto de um sector do proletariado menos consciente. Por um lado, vai ao encontro do trabalhador branco e, por outro, instrumentaliza as problemáticas do racismo, machismo e da xenofobia. É portanto necessário analisar porque a Esquerda falha no combate à extrema-direita. A política “identitária” está longe de ter um papel de destaque nos programas políticos da generalidade dos partidos de Esquerda parlamentar, acabando por servir como um armário de arrumos para os momentos em que seja preciso abordá-la. Num sentido mais lato, a consciência de classe traduz-se pelo reconhecimento das contradições do capitalismo, e logo a assunção da responsabilidade e do compromisso de o derrubar. Para que tal aconteça, é necessário estabelecer claramente essas contradições e apresentar uma saída política, dentro e fora do universo sindical, do e para o conjunto da classe trabalhadora, encabeçada pelo sector mais dinâmico e consciente. É por isso necessário reconciliar as visões “obreirista” e “identitarista”, não no sentido de subjugação, mas de admitir que a consciência de classe é o seu factor unificador e que se desenvolve não onde a classe trabalhadora deveria estar, mas onde se encontra. Repudiando parte da classe trabalhadora, repudiá-la-emos por inteiro.