Socialismo científico? – Uma reflexão de João Martins Pereira (1980)

Este é um excerto da obra “Sistemas Económicos e Consciência Social – para uma
teoria do socialismo como sistema global”
(1980), de João Martins Pereira, hoje
injustamente esquecido.

DA PRÁTICA À «TEORIA ECONÓMICA DO SOCIALISMO»

Antes de entrar na matéria deste ensaio, havemos de entender-nos sobre duas questões prévias essenciais.

A primeira diz respeito aos equívocos que têm rodeado a expressão «socialismo científico». O uso e abuso que dela é feito terá levado muitos a pensar que existe uma «ciência do socialismo», fundada obviamente por Marx, que definirá com rigor as leis que presidem ao funcionamento duma sociedade socialista, a qual deverá por esse facto ser identificável sem margem a discussão. Ou essas leis precisas, «científicas», são respeitadas — e temos socialismo — ou o não são — e estar-se-á perante uma «falsificação», admitindo que tal sociedade a si própria se atribui esse epíteto.

Ora sucede que terão Marx e Engels cometido erros sem conta — e numerosos lhes são imputados com grande ligeireza, logo sem qualquer fundamento — mas esse, seguramente, não. A expressão «socialismo científico» tinha então um sentido muito distinto. Poderá não ter sido feliz a escolha do adjetivo, mas há que reconhecer que ele se destinava apenas a diferenciar a démarche adotada da dos «utópicos», que se limitavam a idealizar uma nova sociedade sem a articular de modo racional com as formas de organização social que a precediam. A partir do ideal cooperativo, da «célula cooperativa», imaginar uma sociedade que seria a simples justaposição de unidades cooperativas, passando assim por um golpe de mágica da «solidariedade de pequenos grupos» à «solidariedade geral» (Owen); a partir de um «falanstério», em que as relações seriam as do mais extremado comunismo, antever uma sociedade que seria um grande falanstério, a «ordem societária harmónica» (Fourier); a partir de um conceito de liberdade individual sem limites, sonhar com uma sociedade cuja coesão seria assegurada por uma multiplicação ad infinitu[m] de contratos entre homens livres, associados por afinidades e vocações, sem que algum se pudesse arrogar uma ínfima parcela de autoridade sobre os outros (Proudhon); a partir duma divisão anti-aristocrática da sociedade entre «produtores» e «ociosos», postular uma espécie de «sociedade de competências», uma «meritocracia» tão próxima afinal da visão tecnocrática dos nossos dias (Saint-Simon) — tudo isto se inspirava mais do desejo que das realidades, de um «dever ser» ideal do que de uma análise do «que é». Em particular, a maioria daquelas propostas pressupunha uma visceral crença na bondade inata do homem. É curioso aqui recordar que é ao marxismo que por vezes tem sido assacado este otimismo primário quanto à propensão humana para o altruísmo, a solidariedade, a generosidade. Não pouco contribuíram para isso os que leram o marxismo com lentes predominantemente humanistas e nele viram pois um humanismo,no essencial. Muitos desses, gente quase sempre vinda das disciplinas literárias ou filosóficas, vêem mesmo na famosa questão dos «direitos humanos» nas sociedades de modelo soviético, a prova decisiva de que o marxismo estará aí mais do que enterrado (enquanto outros, em contrapartida constituem esse facto como parte integrante do marxismo, enquanto «anti-humanismo»). Sucede que a teoria marxista — e por isso também tem sido muito criticada —, ao procurar analisar o processo histórico, sempre acentuou o papel das classes sociais e do seu confronto, em termos de interesses, supondo a ação individual mais ou menos diretamente determinada por esse quadro social em que o conflito, e mesmo a violência, são regra. É precisamente na negligência deliberada do subjetivo, na busca de leis sociais objetivas, que os primeiros teóricos marxistas puderam fundar a reivindicação do estatuto científico para a sua abordagem da história, da sociologia, da economia. Não só nunca postularam que os homens seriam naturalmente bons (nem maus), como nem sequer alguma vez colocaram o conflito entre proletários e capitalistas em termos maniqueístas, de luta entre bons e maus. E por não reconhecerem qualquer solidariedade natural mesmo aos proletários, eles os incitam a ser solidários, após demonstração de que isso é condição da sua vitória: «Proletários de todos os países, uni-vos!». O percurso é inverso do dos idealistas, do dos utópicos: o mecanismo próprio do modo de produção capitalista desenvolve interesses contraditórios e antagónicos entre exploradores e explorados; a compreensão desses interesses, e da inelutabilidade da luta a travar, levará a uma cada vez maior solidariedade entre os membros das classes em confronto. A solidariedade aparece assim quando muito como uma necessidade histórica, e não como um sentimento inerente a uma qualquer natureza humana, que cada um transporta consigo para a vida coletiva. Ela é uma conquista, que só ficará concluída na distante «sociedade sem classes», de que aliás Marx e Engels tão pouco disseram. Diga-se desde já que é justamente na articulação subjetividade/ objetividade que estará porventura um dos pontos cruciais a aprofundar num reexame de Marx face às sociedades modernas.

João Martins Pereira por Dulce Fernandes

Retomemos a questão do «socialismo científico». Contrariamente aos utópicos, Marx e Engels intentam descobrir as leis fundamentais da dinâmica do modo de produção capitalista e procuram demonstrar que essa dinâmica (assente em contradições) conduzirá inevitavelmente à conquista do poder pelo proletariado, à transição para o socialismo. Só que tal socialismo não será mais nem menos «científico» do que outro qualquer: o que pretende ser científico é a demonstração de que lá (onde?) se chegará. E mais: de que, dada a continuidade histórica (na história pode haver ruturas, mas não hiatos: estes são do domínio das utopias, só existem no pensamento), a nova sociedade ainda virá fortemente marcada por aquela «de cujos flancos saiu» e que, portanto, a conquista do poder pelos trabalhadores é apenas o primeiro passo concreto na arrancada para o socialismo, o início da transição.

Em resumo, Marx e Engels, não nos deixaram qualquer «ciência do socialismo», nem isso seria obviamente possível. Deixaram-nos, pela lógica da sua démarche, duas condições eliminatórias: sem o poder dos trabalhadores e sem a produção organizada em função de objetivos coletivamente definidos (o que implica, sem ser suficiente, a propriedade coletiva dos meios de produção), não haverá socialismo. E deixaram mais algumas «pistas», que não cabe explorar aqui. Ou seja, é importante ter presente, quando se ouça referir «as leis fundamentais do socialismo (ou da economia socialista)» ou coisa semelhante, que isso nada tem que ver com o marxismo tal como originalmente formulado, mas com uma teorização decorrente de práticas posteriores que eventualmente se reclamam da paternidade marxista, o que só por si as não valida ou invalida enquanto leis com «estatuto científico» supostamente indiscutível. Tal estatuto só lhes poderá ser atribuído segundo os critérios que regem toda e qualquer démarche científica, e muito em particular os processos de conhecimento específicos das chamadas «ciências humanas».

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