Uma nova sondagem, publicada há dias, assinala que a direita coligada – PSD, Chega, IL e CDS – poderia ultrapassar o PS e, desta forma, disputar o Governo. Há poucas semanas, Rui Rio surpreendeu o país (ou não tanto assim), ao assumir a disponibilidade para aliar-se ao Chega. A par disto, dá-se uma escalada de violência e ameaças racistas, por parte de grupos neo-fascistas. De forma mais subtil, outros temas expressam a intoxicação direitista, como as notícias constantes contra a Festa do Avante (enquanto eventos religiosos em Fátima agregam milhares de pessoas). O eixo desta reanimação da direita é o crescimento do partido fascista de André Ventura, embalado seja pela crescente escalada de violência racista, seja pelo apoio crescente de sectores empresariais, ligados às armas, às tintas Barbot ou até ao universo Espírito Santo. Nada disto é diferente de processos que vimos noutros países, como Grã-Bretanha, EUA, Brasil ou Itália, cada uma à sua maneira. Por outro lado, hoje o descrédito dos Governos Trump e Bolsonaro, ainda que não retirem de campo a ameaça neo-fascista, tornam mais fácil enfrenta-la. A questão é como.
Ninguém de esquerda pode deixar de ponderar nas formas de travar o perigo do regresso da direita ao poder, ainda para mais com o Chega como componente. Um Governo Rio-Ventura faria o Governo Passos-Portas, que fustigou o país com austeridade, parecer moderado. Todas as organizações, partidos e movimentos, devem parar para pensar em como combater este perigo. Nenhum movimento – sindical, feminista, anti-racista, climático etc. – pode ser indiferente a este cenário.
A César o que é de Costa
Apoiado nisto, e prevendo o arrepio que o regresso da direita causa na espinha de muitos eleitores, Carlos César veio repetir o desafio que Costa fez, há semanas, ao BE e ao PCP: a reedição da Geringonça. Para passar a ideia de que têm sido os partidos da esquerda a bloquear está solução, César diz que “o PS tem sido claro na sua opção à esquerda”. Esta afirmação é falsa. Por exemplo, Costa já disse que vai apoiar Marcelo Rebelo de Sousa nas próximas presidenciais. Se a opção do PS é à esquerda, porque não apoiar as candidaturas de BE, PCP ou de Ana Gomes, caso esta avance? Na UE também vemos Costa alinhado não apenas com Merkel, mas em reuniões com o Governo neo-fascista da Hungria, aceitando um acordo europeu repudiado (com razão!), por BE e PCP e que tem o consentimento da direita. Se analisarmos a política, encontramos também cada vez menos opções à esquerda da parte do PS. Não há reforço sério dos transportes públicos, mas o Governo insiste na construção do aeroporto do Montijo; perante o crescimento do desemprego, não mostra abertura para impedir os despedimentos em empresas com lucros; nas relações laborais, após cinco anos, mantém o essencial das medidas da Troika; no combate ao racismo, o PS tem-se destacado pelo silêncio e a inacção… Se isto são opções clara à esquerda, o que seriam opções à direita?
Não afundar com o centro
Contudo, não é por simples casmurrice esquerdista que não consideramos uma aliança com o PS boa ideia. É porque ela não traria benefícios sérios a quem trabalha e abriria caminho à direita. Dito de outra forma: é por não trazer benefícios sérios a quem trabalha que uma aliança ao centro (com o PS), abriria caminho à direita. Dizemos que não traria benefícios a quem trabalha com base na experiência recente. Se é verdade que, nos primeiros dois anos da Geringonça, houve uma devolução parcial de rendimentos, desde aí os salários estagnaram, a crise da habitação piorou, a precariedade aumentou e agora o desemprego explodiu. Isto foi assim desde a reeleição do PS mas a verdade é que os dois últimos anos da Geringonça não foram muito diferentes. Lembremo-nos que estes foram anos de crescimento económico. Agora que a crise voltou, ainda é menos provável que o PS aceite conceder à esquerda e aos trabalhadores medidas significativas. Pelo contrário, o que se perspectiva é uma queda do PIB e um aumento do desemprego, já nos próximos meses. Da parte de BE e PCP, deixar de fazer oposição ao Governo e não apresentar uma alternativa seria, aí sim, pavimentar uma auto-estada para o regresso da direita – com Ventura ao volante. De resto, nada disto é novo. A quebra do centro político é uma tendência em quase todo o mundo. Se Costa conseguiu minimizar essa quebra em tempos de crescimento da economia e do emprego, não é expectável que o consiga fazer agora. Agarrar-se ao centro político e ao Governo no momento em que este tem tudo para começar a resvalar significaria, da parte da esquerda, preparar-se para resvalar também.
Chega de Ventura!
Não tem de ser só o Chega a crescer. Se são possíveis saltos eleitorais à direita, eles também o são à esquerda. Aliás, a esquerda tem mais forças acumuladas para o fazer. É preciso, isso sim, querer fazê-lo e ter uma estratégia nesse sentido.
O que o neo-fascismo entendeu no mundo, e Ventura importou para o nosso país, é que não vivemos tempos de moderação. O que está, dificilmente permanecerá. Pelo que a batalha é sobre o que vai substituir a actual ordem de coisas: uma distopia anti-democrática, racista e ultra-liberal, como quer Ventura, ou uma sociedade de democracia radical, pleno emprego e igualdade social, como queremos nós, Socialistas? A defesa das liberdades democráticas e dos direitos sociais deve ser tida com isto em mente. Ou seja, mesmo quando é obrigada a lutas defensivas e, desta forma, a estabelecer alianças com sectores moderados (como o PS), a esquerda está obrigada a apresentar uma caminho próprio, mais audaz. De um ponto de vista estratégico, vivemos tempos em que a melhor defesa é o ataque e em que jogar para o empate só garante a derrota. Foi isso que Ventura entendeu e que, no espectro político oposto, devemos imitar.
Unir a esquerda e os movimentos sociais
As forças à esquerda, no sentido político e social, são grandes no nosso país, bem maiores que a extrema-direita certamente. Porém estão divididas e dispersas. Sobretudo, estão órfãs de uma estratégia ofensiva, pois passaram quatro anos remetidas à defesa do “mal menor”. Unir essas forças, é o primeiro passo para virar o jogo. Por isso é precisa uma aliança da esquerda, que una BE, PCP, os Verdes, Joacine Katar Moreira, até o PAN ou o Livre. Mas não deve ser só uma aliança parlamentar. Ela deve juntar forças com a CGTP e o movimento Sindical, o movimento negro e anti-racista, o movimento feminista, climático e pela habitação. Esta aliança deve dar-se em base a um programa mínimo, que defenda o emprego, habitação, a saúde, combate o racismo e defenda a transição energética – por exemplo. Nesta base, seria possível mobilizar centenas de milhares de pessoas. Ventura, que não mobiliza ainda mais que uma minoria ruidosa, consegue polarizar o debate à direita. Se a esquerda juntar forças e apoiar-se nas lutas pode conseguir uma polarização bem maior em defesa de mudanças progressivas.
Esta poderia ser uma política para as eleições, por exemplo já nas próximas presidenciais. Uma candidatura convergente da esquerda, assente nos movimentos sociais e sindical poderia levar Marcelo à segunda volta e abafar Ventura. Mas não deveria ser uma estratégia eleitoral. Imaginemos uma manifestação convocada em torno do programa citado, encabeçada por Catarina Martins, Jerónimo de Sousa, Joacine Katar Moreira, Isabel Camarinha, da CGTP, e outras lideranças dos movimentos sociais. Seria possível trazer dezenas de milhares às ruas. O Governo teria de dar resposta e os fascistas seriam remetidos ao silêncio. Imaginemos assembleias de base, nos bairros, empresas e escolas, para dinamizar esta luta unitária – quantos milhares de jovens e trabalhadores, de precárias e pessoas racializadas seriam trazidas para o debate público? Nesse sentido, apresentar sob a forma de programas as exigências populares, organizar em lutas essas mesmas exigências e sair à rua para lhes dar voz é urgente. Como a manifestação anti-racista de 6 junho, o Movimento Negro deu o exemplo, há que segui-lo. É esse o caminho a seguir: unidade, combatividade e mobilização, sem medo de propostas “fraturantes”. Só isso pode abrir caminho à esquerda, confrontar o Governo e travar a direita.
Isto não nega a possibilidade de, em momentos pontuais, usar o PS para dificultar a vida à direita. Mas entre usar o PS ou ser usado por ele há uma diferença – é nessa fronteira estreita mas crítica que se define muita da estratégia da esquerda. Se se repetisse um cenário como o de 2015, de uma minoria relativa do PS, é inevitável fazer algum tipo de acordo para impedir o regresso da direita. O que não tem de significar estar quatro anos preso ao PS – esse foi o erro da Geringonça. O desafio é ir mais longe: calar os fascistas, travar a direita e construir, de baixo para cima, uma alternativa ao PS. Para isso é preciso unir a esquerda e as lutas numa Frente Única. Devemos começar já!